Os Hesicastas

30.04.2010

Um texto de João Bénard da Costa a propósito de The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988), realizado por Martin Scorsese, baseado no romance de Nikos Kazantzakis adaptado por Paul Schrader:

No século VI da nossa era, Justiniano, Imperador de Bizâncio, fundou no Monte Sinai o Mosteiro de Santa Catarina. A abside da igreja principal foi decorada com um mosaico que representa a Transfiguração. Para os primeiros monges do convento, essa visão só concedida a três Apóstolos (Pedro, Tiago e João) e em que Cristo, no Monte Tabor, lhes apareceu ao lado de Elias e de Moisés, era a única manifestação da “luz de Deus”, depois da Aparição de Jeová a Moisés, no Monte Sinai. Sintomaticamente, em toda a tradição da mística ortodoxa até ao século IV, a “luz dos séculos a vir” (essa luz que tornou as vestes de Cristo mais resplandecentes e brancas do que qualquer greda de terra, na descrição de Marcos, 9:2-8), surgida por antecipação no Sinai, manifestou-se plenamente no Tabor. Para atingir o êxtase dos Apóstolos em tal momento (êxtase tal que Jesus, quando desciam do Monte, lhes proibiu que contassem o que tinham visto fosse a quem fosse “até que o Filho do Homem ressuscitasse dos mortos”) essa luz foi a imagem mais procurada pelos monges do Oriente Cristão.

Entre eles, avulta João, chamado Clímaco, Higómeno de Santa Catarina entre 580 e 650. O cognome veio-lhe da sua obra mais célebre: A Escada do Paraíso (klimax é o nome grego para escada).

Nesse livro, onde se reflectem influências muito mais antigas, como as de Macário o Egípcio e de Evagro Pôntico, desenvolve-se um complexíssimo sistema de espiritualidade monacal e estabelece-se uma radical diferença entre o hesicasta (de hésiquia=“solidão”) e o cenobita. “O hesicasta é aquele que aspira a circunscrever o Incorporal no seu corpo carnal. É o que vive sozinho com Deus. O cenobita precisa da ajuda dos irmãos. O hesicasta só pode ser auxiliado pelos anjos.” Por isso, “fechai a porta da vossa cela ao vosso corpo, a porta da vossa boca às vossas palavras, a porta interior aos espíritos”. Mais vale um pobre obediente do que um hesicasta distraído. A solidão é um culto e um serviço ininterrupto a Deus. Seja a vossa respiração (“sopro”) tão una como a memória de Jesus. Percebereis, então, a necessidade da solidão.”

A oração de Jesus está, pois, no centro de toda a espiritualidade hesicástica. O Nome do Verbo Encarnado confunde-se com as funções essenciais à vida: está presente no “coração”, está ligado à “respiração”. Mas João, o Clímaco, como todos os grandes doutores da “oração ininterrupta”, avisa contra as possíveis confusões entre «a memória de Jesus» e os efeitos que a imaginação pode produzir na alma dos monges. Nunca essa “memória” deve tomar a forma de “meditação” sobre tal ou tal episódio da vida de Cristo, nunca o noviço deve representar uma imagem exterior a si próprio. Só assim, “a visão luminosa” pode deixar de ser entendida como símbolo ou como consequência da imaginação, para ser rigorosamente uma teofania, tão real como a do Monte Tabor, pois que nela se tornará presente o próprio Corpo Deificado de Cristo.

A distinção entre a visão desse Corpo Deificado (que só três Apóstolos tiveram no Monte Tabor) e a representação do corpo humano (visto por todos os que conheceram Cristo e imaginável em qualquer representação de Cristo) é capital na patrística ortodoxa como o fora na patrística grega. Tinha a vencer dois escolhos consideráveis, de sinal oposto: ou uma tal abstracção da Pessoa de Cristo que o mistério da Encarnação acabava por ficar elidido (concepção neoplatónica da divindade natural do intelecto, que ainda é dominante em Evagro Pôntico) ou uma representação tão presente do Seu Corpo Humano que “a luz dos séculos a vir” se podia reduzir à imagem mental. E João, o Clímaco, retoma a distinção na própria visão do Cristo sobre Si Próprio. O que os Apóstolos viram na Transfiguração jamais Ele o viu. “O Seu próprio Corpo era um limite à Sua Glória. Era um Corpo que podia ser tocado por outros corpos, ao contrário do Corpo Ressuscitado ou Transfigurado (Noli mi tangere)”. Se alguns predecessores do autor de A Escada do Paraíso (por exemplo, os Messalianos, para os quais Deus e Satanás coexistiam no homem como forças iguais) tinham tendido (como o maometanismo que, em parte, deles descende) para a interdição de qualquer representação da imagem divina, os hesicastas de Santa Catarina insistiam nessa representação (precisamente para a separar da visão) e incluem, igualmente, como acima disse, as primeiras pinturas conhecidas tendo como tema a Transfiguração. Mais tarde, Gregório de Nissa falará das “trevas de Deus” ou da “treva luminosa” e Simeão acentuará o realismo intenso de uma mística cristocêntrica, distinguindo a Essência Divina (que a teologia apofática ou negativa postulara como radicalmente inacessível) e a presença de Cristo nos homens e como homem, acto (energela) livre de Deus.

A esta altura desta árida crónica (uma vez não é costume e só poucos saberão como estou a banalizar-me) quem ainda não desistiu perguntará a que propósito vem tudo isto e o que é que tudo isto tem que ver com os meus filmes da vida. Apetecia-me responder-lhes com um flashback sobre a velha Faculdade de Letras (a do Convento de Jesus) e sobre o meu professor de História da Filosofia Medieval, o dr. Luís Ribeiro Soares, que, em mim e noutros, incutiu para sempre o gosto por estas questões. Não é culpa dele se tendi sempre a vê-las mais sob espécie estética do que teológica.

Mas, se não fosse o que com ele aprendi, também teria ficado com uma visão meramente estética do filme de Scorsese, The Last Temptation of Christ.

Porque uma das reflexões mais apaixonantes que se podem fazer em torno deste filme é precisamente a do conflito nele figurado entre o texto de Kazantzakis que Scorsese adaptou (profundamente imbuído desta tradição da mística ortodoxa) e a formação católica do realizador, inscrita numa tradição que, há muitos séculos, subalternizou ou esqueceu estas questões. O filme de Scorsese surge, assim, por um lado, como uma metáfora católica do mistério da dupla natureza de Cristo e, por outro lado, como uma aproximação da visão dos hesicastas, retratando Cristo dentro dessa antiquíssima tradição.

Duas sequências do filme colocam o problema de modo inédito no imaginário ocidental.

A primeira é a sequência da ressurreição de Lázaro. Se nela subsiste o conhecido paralelismo com a ressurreição de Cristo (como Cristo, Lázaro, foi ressuscitado ao fim do terceiro dia) a representação, nessa sequência, dos corpos de Cristo e de Lázaro, ecoa a distinção capital entre visão e imagem. Face às trevas do túmulo, e à abertura da gruta onde jaz Lázaro, Cristo é quase reduzido a silhueta, como se se despisse da corporalidade e fosse pura luz. Pelo contrário, Lázaro, quando ressuscita, é a imagem do Cristo das Dores da tradição ocidental. Mas quando caminha para Cristo, uma luz diversa o nimba, como se ele também fosse prefiguração da “luz dos séculos a vir”.

A outra sequência é a da entrega por Cristo do seu Coração, imagem fortíssimamente carnal, mas que reconduz a quanto atrás se disse sobre a fusão do Verbo Encarnado com as funções essenciais à vida. Em muitas outras sequências, nomeadamente na prodigiosa sequência da tentação no deserto, o que Scorsese encena é, rigorosamente, a distinção entre visão e representação, memória de deus e imagem do mundo. Por isso, é tão singularmente coerente que a última tentação seja uma representação representação conduzida por um anjo, único companheiro do Cristo Hesicástico), representação apenas interrompida quando a visão se sobrepõe a ela, ou seja, quando Cristo se redescobre, sozinho, na Cruz. Por isso, Kazantzakis fala do “tudo está consumado” como de um “grito triunfal”.

“Porque era como se dissesse: tudo começa.” Conseguir essa visão através de uma imagem — último plano do filme — é proclamar a realidade da energia e a radical inacessibilidade da essência.

Nada se entende de nada, se não se entender isto.

The Shadows of the Church

13.04.2010

I am a Christian then a Catholic. I am Catholic because I am Christian. I know a lot of Christians from other churches, but for me the Church of Christ is about community, the kind of unity that happened in the beginning, with the first followers of Christ, who were transformed by and through him (and not only because of his teachings). This unity has to be visible and this is what the Catholic Church embodies.

The great Dominican friar Timothy Radcliffe, the only member of the English Province of the Dominicans to have held the office of Master of the Order of Preachers (from 1992 to 2001) since the Order’s foundation in 1216,[1] puts it like this:

I am not a Catholic because our Church is the best, or even because I like Catholicism. I do love much about my Church but there are aspects of it which I dislike. I am not a Catholic because of a consumer option for an ecclesiastical Waitrose rather than Tesco, but because I believe that it embodies something which is essential to the Christian witness to the Resurrection, visible unity.

When Jesus died, his community fell apart. He had been betrayed, denied, and most of his disciples fled. It was chiefly the women who accompanied him to the end. On Easter Day, he appeared to the disciples. This was more than the physical resuscitation of a dead corpse.

In him God triumphed over all that destroys community: sin, cowardice, lies, misunderstanding, suffering and death. The Resurrection was made visible to the world in the astonishing sight of a community reborn. These cowards and deniers were gathered together again. They were not a reputable bunch, and shamefaced at what they had done, but once again they were one. The unity of the Church is a sign that all the forces that fragment and scatter are defeated in Christ.

All Christians are one in the Body of Christ. I have deepest respect and affection for Christians from other Churches who nurture and inspire me. But this unity in Christ needs some visible embodiment. Christianity is not a vague spirituality but a religion of incarnation, in which the deepest truths take the physical and sometimes institutional form. Historically this unity has found its focus in Peter, the Rock in Matthew, Mark and Luke, and the shepherd of the flock in John’s gospel.

From the beginning and throughout history, Peter has often been a wobbly rock, a source of scandal, corrupt, and yet this is the one — and his successors — whose task is to hold us together so that we may witness to Christ’s defeat on Easter Day of sin’s power to divide. And so the Church is stuck with me whatever happens. We may be embarrassed to admit that we are Catholics, but Jesus kept shameful company from the beginning.[2]

Looking at the history of the Church I understand why many are drawn to other Christian denominations, to other religions, and even to atheism. Some influential members of the Church did not follow the Gospel. But why should we be surprised by this? Sin exists. We are all — all — in need of salvation. That is why the Church was founded by Jesus Christ. It is a place for sinners, the place where sinners may recognise themselves as such, repent, and find forgiveness, hope, and the joy of doing good — only some of its member do not do this. The Church is holy because in her, by being part of her, we find holiness, not because everybody in her is holy. In fact, the Church mirrors (perhaps it even intensifies) the struggles that we, humans, go through. The Church is not perfect. It is made of imperfect creatures with a divine mission defined and begun by Jesus.

In the second tale of the first volume of Boccacio’s The Decameron, Abraham, a Jew goes to Rome during the Borgia reign[3] to decide whether or not to convert to Christianity. Having seen the evil life of the pope and the curia, he returns to Paris and decides that he wants to be baptised. Read carefully what he says to his Christian friend, the merchant Giannotto di Civignì:

To the best of my judgment, your Pastor, and by consequence all that are about him devote all their zeal and ingenuity and subtlety to devise how best and most speedily they may bring the Christian religion to nought and banish it from the world. And because I see that what they so zealously endeavour does not come to pass, but that on the contrary your religion continually grows, and shines more and more clear, therein I seem to discern a very evident token that it, rather than any other, as being more true and holy than any other, has the Holy Spirit for its foundation and support.[4]

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[1] I have read and written about two of his books, What Is the Point of Being a Christian? (London: Burns & Oates, 2005) and Why Go to Church?: The Drama of the Eucharist (New York: Continuum, 2008).

[2] Timothy Radcliffe, OP, “Should I Stay or Should I Go?: Clerical-Abuse Scandal”, The Tablet, 10 Apr. 2010, pars. 12-16, http://www.thetablet.co.uk/article/14543.

[3] Not all of the Borgias were corrupt, by the way. Francis Borgia (1510-1572), great-grandson of Alexander VI (Rodrigo Borgia), courageously avoided the choices of his relatives. Loving father and husband, he became a Jesuit priest after the death of his wife, renouncing his aristocratic titles and then turning down the title of Cardinal, opting for a life as an itinerant preacher. He was declared a saint in 20 June 1670 by Clement X.

[4] Giovanni Boccaccio, The Decameron, trans. James Macmullen Rigg (Gloucester: Dodo Press, 2005), 37.