In Memoriam, José Augusto Mourão (1947-2011)

05.05.2011

Soube agora mesmo que José Augusto Mourão, meu colega de departamento na Universidade Nova de Lisboa, faleceu hoje. Para além do seu trabalho académico nos domínios da semiótica, hipertextualidade e cultura, era frade da Ordem dos Pregadores ou Dominicanos, que como ele escreveu “têm como lema a procura da verdade, o amor ao estudo e ao estar-se com”. Era também presidente do Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) sediado no Convento de São Domingos. Recordo um homem de uma humilde convicção, em escuta permanente, sempre inquieto, à procura, tentando evitar as armadilhas e a arrogância do nosso discurso sobre o mundo e sobre os outros.

Deixo um poema seu em duas partes, “Protestatio et Confessio”, para estarmos mais uma vez com ele:

I
Renuncio à verdade solitária ou particular
renuncio à fé sem amor, que é o puro subjectivismo

creio na dimensão militante de toda a verdade
creio no amor como fidelidade ao puro dom da graça

renuncio à esperança judiciária, distributiva,
que dá a uns a recompensa e a outros o inferno

creio em Deus, força da vida e madrugada de todas as coisas
creio na reconciliação no amor como poder universal

renuncio a uma fé salarial e à visão sacrificial
que justifica a fome, a morte, a vítima

renuncio à vida do desejo como autonomia, que é o pecado
renuncio a um coração que seja em nós um rio que não corre

creio na ressurreição subtraída ao poder da morte
creio na liberdade do Espírito desampara os que só na letra se arrimam

renuncio ao fel das relações envenenadas
a sedução do dinheiro que compra a vida e a fama

creio na Páscoa do mundo que a Sarça transfigura
creio no trabalho do amor que borda a paz e a justiça

II
à banalização do mal eu digo não
à tecnologia das próteses e ao mercado
que conforta em nós Narciso, digo não

digo não à xenografia da catástrofe mole,
à vociferação que matou Abel
e à justificação da violência como lei

ao discurso peremptório digo não também
e à satanização do outro
que nos defende de nós próprios

digo não à maneira do ser humano
regido pelo “valor” de troca
e pelo imanentismo que leva ao caos pluralista

creio no universo libertado,
em expansão, e não feito apenas de acaso e de necessidade

creio no homem em devir
que vem do desejo e da Vida absoluta de Deus
e não do determinismo biológico

creio em Deus como a festa maior que há-de vir
e das encruzilhadas em que os pedintes nos surpreendem

creio no Deus das noites sem apelo
do silêncio insepulto
e das claras madrugadas

creio no Pai que no dom do Filho se retira
creio em Jesus Cristo, o Verbo feito carne
e voz de sangue inconsporcado

creio no dom que ele foi até ao fim
e a todos alcançou

creio na Páscoa do Espírito e do Fogo
creio no Espírito da diferença irredutível,
no intenso e no profundo que nos liga
ao espaço-tempo da presença-amante