Origem, Recomeço

31.01.2015

A origem — agora:

coisa mínima, alguém te chamou —
Há um verso antigo que regressa à invenção
e tudo poderá talvez recomeçar

MANUEL GUSMÃO, Migrações do Fogo

O Nada de Deus

22.01.2015

Torna-te como criança:
faz-te surdo e cego!
Torna-te nómada,
atravessa o que é ser,
e o que é nada!
Abandona o lugar,
abandona o tempo
abandona as imagens.
Se seguires sem destino
pelo trilho estreito
alcançarás o centro deserto.

Ó minh’alma
sai para fora, Deus entra!
Funde todo o ser
no nada de Deus.
Derrama-te no caudal sem fundo!
Se saio de ti
tu vens até mim.
Se me perco
é a ti que encontro.
Oh quem pudesse medir tua vastidão!

MESTRE ECKHART, OP

Dois Modos da Vivência Religiosa

17.01.2015

Estes três parágrafos de um estimulante estudo de João Vasco Fagundes dão que pensar, porque através do exemplo que ele recolhe de Hegel apontam com clareza para uma religiosidade entendida de modo materialista e dialéctica, isto é, uma religiosidade que emerge da história e nela se vai inscrevendo, decidindo, e significando:

No plano da materialidade, nenhum sistema se encontra fixado em qualquer das configurações que fáctica e positivamente ostenta nas diversa fases e tapas do seu devir. O processo de transformação historicamente determinado, através do qual os sistemas evoluem e se desenvolvem, é a verdade, é a realidade do seu ser.

No plano do conhecimento, porque o inicial indeterminado não reflecte ainda o concreto real no seu desenvolvimento, a verdade não pode estar no princípio, mas sim no processo de elevação racional ao concreto espiritual, no saber do concreto na sua riqueza desenvolvida sempre em aberto.

É disso mesmo que Hegel nos fala quando, a propósito da “Ideia absoluta” enquanto universal concreto, recorre a uma comparação com dois modos da vivência religiosa: “a Ideia absoluta é, sob este aspecto [o de um universal concreto], de comparar com o ancião que diz as mesmas frases religiosas do que a criança, mas para quem elas têm um significado de toda a sua vida. Se também a criança entende o conteúdo religioso, para ela este vale, contudo, apenas como alguma coisa fora da qual ainda fica a vida toda e o mundo todo.”[1]

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[1] João Vasco Fagundes, A Dialéctica do Abstracto e do Concreto em Karl Marx (Lisboa: Grupo de Estudos Marxistas, 2014), 123.

A Garden Amidst the Flames

13.01.2015

O Marvel! A garden amidst the flames.
My heart has become capable of every form:
it is a pasture for gazelles and a convent for Christian monks,
and a temple for idols and the pilgrim's Kaa’ba,
and the tables of the Torah and the book of the Quran.
I follow the religion of Love: whatever way Love’s camels take,
that is my religion and my faith.

IBN ARABI, Tarjuman al-Ashwaq

O Que Quer Dizer Ser Humano?

05.01.2015

A Olinda Marques da Liga Operária Católica - Movimento de Trabalhadores Cristãos pediu-me um pequeno texto sobre a minha experiência de catequese. Como lhe disse, não tive tal experiência — embora tenha tido formação dominicana. O meu percurso foi feito à sua margem e, pelo que vejo em muitos casos, a catequese pode ter efeitos perniciosos, de fechamento da imaginação, de desatenção à realidade, de renúncia da crítica. Ela insistiu e escrevi este parágrafo que foi publicado agora na secção “Em Foco” da revista JO: Juventude Operária:

Aprendi o valor da catequese com uma amiga muçulmana de nome Noorin. Bem sei que a catequese é normalmente entendida como um simples processo de instrução no fundamental de uma tradição religiosa, nomeadamente a cristã. Mas na raiz da palavra está outra acção: fazer soar. Além de referências da tradição islâmica, ela usa filósofos gregos e pensadores cristãos nas sessões que coordena no Canadá. A questão central colocada às crianças e aos jovens é esta: o que quer dizer ser humano? Através do desenvolvimento de narrativas, da partilha de experiências, e de um intenso diálogo, as respostas fazem soar a humanidade comum dos participantes, como promessa e projecto, ligando a busca do sentido à escolha da acção, o ser ao agir. Sejamos obreiros do mundo anunciado por Jesus crucificado, sem cativos nem iniquidades — um mundo que realize a nossa humanidade.