Deus, Exigência de Libertação

27.12.2015

O mal de uma certa forma de tradição religiosa é de se situar na linha da explicação, de se limitar unicamente à explicação para evitar a energia transformadora. Melhor ainda, certa tradição religiosa justifica o mundo como ele é, e Deus consagra um momento da sociedade e do mundo, dando-lhe uma auréola e a pretensão do definitivo, do eterno. Fizemos muitas vezes da Igreja, dos sacerdotes e de Deus a capa religiosa, a benção suprema do mundo dividido em classes e em raças desiguais, duma sociedade estruturada a partir duma hierarquia, do comando e da sujeição, dos chefes e dos súbditos, dos senhores e dos escravos.

O que nos é pedido por certas pessoas, caracterizadas pela incultura presunçosa, é a docilidade a respeito do mundo a que estamos habituados. O cristianismo deveria ser a justificação religiosa, o óleo benéfico dum mundo em que uns comandam e os outros obedecem. A Igreja teria por missão dar a sua raiz sagrada ao poder dos chefes bem pensantes, alimentados, educados na docilidade, no bom espírito, e exercitar as massas para a obediência. e enquanto o clero pudesse consentir nesta sujeição mundana e viver na domesticidade espiritual não sairia do seu papel e faria religião. E quando os sacerdotes se recusassem a vergar-se diante da benção espiritual a certos interesses, a certas civilizações, sairiam do seu papel e já fariam religião. Não apresentemos a doutrina de Jesus Cristo como essa justificação espiritual.

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É por isso que retorno agora a resposta de Jesus: Nem ele nem os seus pais pecaram, isto sucede para que sejam manifestados nele as obras de Deus; nem ele nem os seus pais pecaram, isto sucede para que nele brilhe a glória de Deus. Que quer dizer então Jesus Cristo? Que não é nem poderia ser a explicação do mundo. [...] Afirmemo-lo, mais uma vez, categoricamente: Deus não explica, Deus não justifica que o mundo seja assim, como nós o vemos, mas, pelo contrário, Deus é um apelo para que nada fique assim. Deus é um apelo para que tudo mude, para que tudo se transforme, para tudo se inflame.

Não nos resignemos nunca a que alguns homens não vejam, ou não ouçam, ou não falem. Não nos resignemos nunca a que alguns homens sejam explorados por outros, ou pelos seus próprios instintos.

JEAN CARDONNEL, OP, Não ao Intolerável

A Alegria no Tempo da Colheita

25.12.2015

Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor. Todo o calçado ruidoso da guerra e toda a veste manchada de sangue serão lançados ao fogo e tornar-se-ão pasto das chamas. Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.

Is 9,2-5b

Unquiet Heart

15.12.2015

That is why faith, wherever it develops into hope, causes not rest but unrest, not patience but impatience. It does not calm the unquiet heart, but is itself this unquiet heart in man. Those who hope in Christ can no longer put up with reality as it is, but begin to suffer under it, to contradict it. Peace with God means conflict with the world, for the goad of the promised future stabs inexorably into the flesh of every unfulfilled present.

JÜRGEN MOLTMANN, Theology of Hope

Um Lírio entre Cardos

08.12.2015


Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini (1850).

Passam os dias marcados pelo cinismo. Nessa passagem, irrompe uma celebração incompreendida, mesmo entre cristãos. No séc. V, Teódoto de Ancira fez uso de uma expressão que vem do Cântico dos Cânticos para falar da ausência de mácula em Maria. Escreve ele que ela é “como um lírio entre os cardos” (2,2a). No diálogo apaixonado desse livro bíblico, no qual o desejo e o corpo participam numa sedução como conhecimento entrelaçado a dois, é dessa forma que o amado se dirige à amada. Conseguimos viver no presente este amor que não se deixa desfigurar nem vencer? Conseguimos pelo menos concebê-lo? O fundo da festa de hoje é a virtude incorruptível do amor, tal como a encontramos em Maria e depois em Jesus, tal como a lemos nas palavras do Cântico dos Cânticos: “Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor, implacável como o abismo é a paixão; os seus ardores são chamas de fogo, são labaredas divinas. Nem as águas caudalosas conseguirão apagar o fogo do amor, nem as torrentes o podem submergir. Se alguém desse toda a riqueza de sua casa para comprar o amor, seria ainda tratado com desprezo.” (8,6-7).