Doem-nos as Palavras

12.07.2018

Morrem-nos pessoas com quem passamos muito tempo. A morte cava silêncios, mas não tenho jeito para despedidas.

Faleceu há poucos dias um antigo estudante meu, Johny Vieira, que veio do Brasil para estudar na Universidade de Coimbra. Tinha 28 anos quando o cancro o levou. Era um rapaz de uma fé convicta em Cristo, que manteve até ao fim, pelo que dizem as pessoas mais próximas. Viveu nesse amor. Morreu nesse amor. A notícia atingiu-me, e às amigas e aos amigos dele em Portugal que por aqui foram deixando memórias e pêsames, como um murro no estômago. Que não nos abandone a força que o animou.

A próxima Colóquio/Letras publica um artigo meu com o título “José Augusto Mourão, Errante da Palavra”. A publicação do volume Obra Seleta de José Augusto Mourão: O Vento e o Fogo | A Palavra e o Sopro | O Espelho e o Eco (INCM, 2017) serviu de pretexto. Agradeci o convite, mas foi difícil escrever o texto — e, no entanto, foi uma dificuldade que me fez bem enfrentar e superar. O José Augusto foi meu colega de departamento na Universidade Nova de Lisboa e vivia como frade dominicano no Convento de São Domingos, onde me habituei a ir às celebrações da Eucaristia ao domingo. Ele marcou de modo decisivo o meu percurso de vida adulta. Se não me tivesse cruzado com ele, não sei se seria o professor e o investigador que sou hoje. Não seria, certamente, membro da família dominicana como leigo. Enfim, falo sobre tudo isso no artigo porque me pareceu que, sendo eu a falar, não devem faltar outras pessoas com histórias semelhantes. Assim ultrapassei, por um momento, o sentido de reserva que me continua a nortear. Permiti-me falar sobre mim apenas porque estava a falar sobre outra pessoa e, mais do que isso, sobre uma comunidade de pessoas. A morte dele ocorreu em 2011, pouco antes de me mudar para Coimbra. A celebração das Exéquias no Convento foi a mais bela celebração a que assisti naquela que, já nessa altura, ensaiava sentir e viver também como a minha casa. A folha de cânticos, com versos litúrgicos do José Augusto, terminava com um poema dele:

Deus, doem-nos as palavras
dói-nos a voz para dizer
que o nosso irmão deixou de
estar no meio de nós

dá-nos a força
para atravessar esta hora de lágrimas
e a ele a estrada
que percorreu como um cavalo alado
vagabundo e livre

reveste-o da intensidade e da alegria
que lhe marcava o porte e o rosto