Soube agora mesmo que José Augusto Mourão, meu colega de departamento na Universidade Nova de Lisboa, faleceu hoje. Para além do seu trabalho académico nos domínios da semiótica, hipertextualidade e cultura, era frade da Ordem dos Pregadores ou Dominicanos, que como ele escreveu “têm como lema a procura da verdade, o amor ao estudo e ao estar-se com”. Era também presidente do Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) sediado no Convento de São Domingos. Recordo um homem de uma humilde convicção, em escuta permanente, sempre inquieto, à procura, tentando evitar as armadilhas e a arrogância do nosso discurso sobre o mundo e sobre os outros.
Deixo um poema seu em duas partes, “Protestatio et Confessio”, para estarmos mais uma vez com ele:
I
Renuncio à verdade solitária ou particular
renuncio à fé sem amor, que é o puro subjectivismocreio na dimensão militante de toda a verdade
creio no amor como fidelidade ao puro dom da graçarenuncio à esperança judiciária, distributiva,
que dá a uns a recompensa e a outros o infernocreio em Deus, força da vida e madrugada de todas as coisas
creio na reconciliação no amor como poder universalrenuncio a uma fé salarial e à visão sacrificial
que justifica a fome, a morte, a vítimarenuncio à vida do desejo como autonomia, que é o pecado
renuncio a um coração que seja em nós um rio que não correcreio na ressurreição subtraída ao poder da morte
creio na liberdade do Espírito desampara os que só na letra se arrimamrenuncio ao fel das relações envenenadas
a sedução do dinheiro que compra a vida e a famacreio na Páscoa do mundo que a Sarça transfigura
creio no trabalho do amor que borda a paz e a justiçaII
à banalização do mal eu digo não
à tecnologia das próteses e ao mercado
que conforta em nós Narciso, digo nãodigo não à xenografia da catástrofe mole,
à vociferação que matou Abel
e à justificação da violência como leiao discurso peremptório digo não também
e à satanização do outro
que nos defende de nós própriosdigo não à maneira do ser humano
regido pelo “valor” de troca
e pelo imanentismo que leva ao caos pluralistacreio no universo libertado,
em expansão, e não feito apenas de acaso e de necessidadecreio no homem em devir
que vem do desejo e da Vida absoluta de Deus
e não do determinismo biológicocreio em Deus como a festa maior que há-de vir
e das encruzilhadas em que os pedintes nos surpreendemcreio no Deus das noites sem apelo
do silêncio insepulto
e das claras madrugadascreio no Pai que no dom do Filho se retira
creio em Jesus Cristo, o Verbo feito carne
e voz de sangue inconsporcadocreio no dom que ele foi até ao fim
e a todos alcançoucreio na Páscoa do Espírito e do Fogo
creio no Espírito da diferença irredutível,
no intenso e no profundo que nos liga
ao espaço-tempo da presença-amante