Veio o dia habitar a noite.
Um Poema para Outro Natal
Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.— ANTÓNIO RAMOS ROSA, “Nascimento Último”
A Vida da Esperança
Estamos no Advento, um período de espera activa, de escuta atenta, de preparação e expectativa, de abertura ao Natal. Este é um tempo grávido, de esperanças, no qual a esperança pode ganhar outro corpo. A vigília de ontem, no Instituto Universitário Justiça e Paz, pretendeu criar um espaço e um momento férteis que nos permitissem meditar sobre a nossa fé e o nosso presente, pondo-nos a olhar para os dias que esperamos. Deixo a reflexão que li nessa ocasião:
Ouvimos dizer que a esperança é a última coisa a morrer. O mundo ensina-nos que costuma ser a primeira. Sem dúvida porque a curta esperança que vai enchendo os nossos dias é falsa, evaporando-se sucessivamente para dar lugar a outra, e a outra, numa cadeia de que nos precisamos de emancipar. É uma esperança que entope o quotidiano sem deixar espaço para imaginarmos outro mundo. Esta esperança morre porque a verdadeira esperança não se sustenta a si própria, mas necessita de algo que a sustente: um ideal, um projecto, um horizonte de fraternidade, igualdade, paz, e justiça (que constitui o cerne da pregação de Jesus). Se a esperança envolve uma vigorosa perseverança, envolve também necessariamente uma crença fundamentada, com raízes concretas. Esta esperança não é a última a morrer. É aquela que não pode morrer, já que se coloca contra a própria morte e do lado da vida. No Didaqué, obra de instrução cristã compilada onde hoje é a Palestina e a Síria nas primeiras décadas depois de Cristo, lemos logo no início: “Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois.” A via da morte é a da desanimação, da rotina, do fechamento, do definitivo, da opressão, do fim da história. A via da vida é a da ressurreição, da criatividade, da abertura, da transformação, da libertação, da história por fazer. A esperança é a imagem da vida corajosa (Mt 28,10) e abundante (Jo 10,10), daquela que recusa o medo que aprisiona o presente e o futuro, daquela que faz nascer uma nova humanidade.
No Cântico da Vida Diferida
Deus, ensina ao nosso corpo
o seu caminho incerto e frágil
e a humanidade a fazer chegar
da condição humanaque viver seja habitar esse lugar
incerto e frágil da abertura,
das relações que alteram,
das manifestações mais altas do humano,
não da violência cega e do dinheiro que faz escravosempresta ao nosso corpo
o corpo do teu Cristo ressuscitado
que nos congrega
para as fainas do teu Reino e da Terra Prometida,
Deus que ressuscitaste Jesus dos mortos,
por quem vem o Espírito que dá a vida
e como um nó nos une
no cântico da vida diferida e na esperança.— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Vazio Verde”
Cantai a Seiva e o Arado
Cantai a seiva que sobe das raízes,
O arado do tempo cortando o nevoeiro;
Cantai a vida que sangra e incendeia,
Vós todos que lavrais a terra, tecelões e pedreirosEntrai na força escondida do desejo,
Domadores de cavalos, aguadeiros,
Pois vossas mãos acenderam candeias
E vossos olhos alumiaram a noiteTrazei à taça da vida nova que se anuncia
Os trapos velhos das dores enterradas;
Joalheiros de dedos magoados,
Vós todos que esperais o parto das sementesAssinalai a pedra onde caístes
E a madeira em que vos crucificaram:
Porque há música nos ritos da tortura
Que canta o dia novo que não tardaEnquanto não sabemos o caminho,
Cantemos já o dom de caminhar;
Se estamos juntos não teremos medo:
Alguém no invisível nos esperaPlantemos flores à beira do abismo
Há-de haver no deserto um lugar de água
Alguém que nos chame pelo nome
E nos acolhe ao termo da viagem.— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Salmo”
Esperamos
Esperamos todos
o dealbar de um rosto
a aparição de outra coisa
entre o chão de limos e o rumor dos freixos.Esperamos
às portas fechadas do mar
a onda favorável que nos leve ao outro lado
o sopro redentor
o expansivo meio em que a alegria nasce
à espera do fulgor estamos
colados ainda às sebes do negrume
às lívidas camas dos hospitais
que as bocas de sombra entredevoram.Esperamos
o impossível voo
a matéria dos anjos que não desertaram
e dão ao corpo o transporte
para além do peso e da cinzentez das horas.Esperamos
o fim das prescrições sem nome
a cal em que o desenho dos seus pés se inscreva
e o seu calor nos toque
solte-se a garganta enfim
das foices de silêncio que a cercavam
e o teu Nome nos cubra da luz
que se faz carne
e traz no seu bojo nascimentos
do mais fundo da noite do mundo desejados.— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Natal”