O mal de uma certa forma de tradição religiosa é de se situar na linha da explicação, de se limitar unicamente à explicação para evitar a energia transformadora. Melhor ainda, certa tradição religiosa justifica o mundo como ele é, e Deus consagra um momento da sociedade e do mundo, dando-lhe uma auréola e a pretensão do definitivo, do eterno. Fizemos muitas vezes da Igreja, dos sacerdotes e de Deus a capa religiosa, a benção suprema do mundo dividido em classes e em raças desiguais, duma sociedade estruturada a partir duma hierarquia, do comando e da sujeição, dos chefes e dos súbditos, dos senhores e dos escravos.
O que nos é pedido por certas pessoas, caracterizadas pela incultura presunçosa, é a docilidade a respeito do mundo a que estamos habituados. O cristianismo deveria ser a justificação religiosa, o óleo benéfico dum mundo em que uns comandam e os outros obedecem. A Igreja teria por missão dar a sua raiz sagrada ao poder dos chefes bem pensantes, alimentados, educados na docilidade, no bom espírito, e exercitar as massas para a obediência. e enquanto o clero pudesse consentir nesta sujeição mundana e viver na domesticidade espiritual não sairia do seu papel e faria religião. E quando os sacerdotes se recusassem a vergar-se diante da benção espiritual a certos interesses, a certas civilizações, sairiam do seu papel e já fariam religião. Não apresentemos a doutrina de Jesus Cristo como essa justificação espiritual.
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É por isso que retorno agora a resposta de Jesus: Nem ele nem os seus pais pecaram, isto sucede para que sejam manifestados nele as obras de Deus; nem ele nem os seus pais pecaram, isto sucede para que nele brilhe a glória de Deus. Que quer dizer então Jesus Cristo? Que não é nem poderia ser a explicação do mundo. [...] Afirmemo-lo, mais uma vez, categoricamente: Deus não explica, Deus não justifica que o mundo seja assim, como nós o vemos, mas, pelo contrário, Deus é um apelo para que nada fique assim. Deus é um apelo para que tudo mude, para que tudo se transforme, para tudo se inflame.
Não nos resignemos nunca a que alguns homens não vejam, ou não ouçam, ou não falem. Não nos resignemos nunca a que alguns homens sejam explorados por outros, ou pelos seus próprios instintos.
— JEAN CARDONNEL, OP, Não ao Intolerável
Deus, Exigência de Libertação
27.12.2015