O fr. Filipe escreveu-me, escreveu-nos, para lembrar ontem, com Agostinho, “que a construção fez-se com trabalho e a dedicação realiza-se com alegria”. Faço parte desta história já com oito anos e esta história faz parte de mim. Foi no Convento de São Domingos, em Lisboa, que eu comecei realmente a descobrir o que é uma comunidade e, portanto, o que é ser cristão e, depois, o que é ser dominicano — e essas são descobertas intermináveis.
Deus e Nada
Surrexit autem saulus de terra apertisque oculis nihil videbat. Estas palavras que pronunciei em latim são escritas por São Lucas nos Actos a respeito de São Paulo e significam: “Paulo levantou-se da terra e, de olhos abertos, viu o nada.” Parece-me que esta pequena palavra tem quatro significados. Um deles é: quando ele se levantou da terra, de olhos abertos, viu o nada e esse nada era Deus, pois, quando ele viu Deus, chamou-lhe um Nada. O segundo significado: quando se levantou, nada viu senão Deus. O terceiro: em todas as coisas ele não viu nada senão Deus. O quarto: quando viu Deus, viu todas as coisas como um nada.
— MESTRE ECKHART, OP, “Sermão 71”
(trad. Sérgio Dias Branco, OP, a partir da trad. para inglês de Bernard McGinn)
On a Dark Night
Oh, night that guided me,
Oh, night more lovely than the dawn,
Oh, night that joined Beloved with lover,
Lover transformed in the Beloved!— ST. JOHN OF THE CROSS, OCD, Dark Night of the Soul
Histórias Cosidas
A partir de Hab 1,2-3/2,2-4, 2Tim 1,6-8/13-14, e Lc 17,5-10:
Nas leituras de hoje, Habacuc começa por olhar para cima, implorando ajuda divina, mas acaba por gravar a sua visão de justiça em tábuas para que possa ser lida e partilhada. A vida de um justo como ele alimenta-se da sua fidelidade a um horizonte ao qual a humanidade aspira. Este episódio da vida espiritual de Habacuc lembra o que Agostinho diz no “Sermão 50”: para enfrentarmos os outros temos de nos enfrentar a nós mesmos. É também nesse sentido que as palavras de Jesus vão. Perante o pedido de fazer aumentar a fé naqueles que o acompanham, ele aponta pelo contrário para uma fé pequena mas fértil, grandiosa na sua pequenez, como um grão de mostarda. A linguagem dele é intrincada e indirecta, definindo a fé não como uma doutrina, mas como uma prática. Uma prática quotidiana e convicta do serviço fraterno que conduz à coincidência entre o que devemos fazer, o que queremos fazer, e o que podemos fazer. Para Jesus, tal como para o profeta Habacuc, é assim que a nossa história pessoal se vai cosendo a uma história maior, a de um povo.
Trabalho Digno
A Liga Operária Católica e outras organizações do Movimento de Trabalhadores Cristãos da Europa promovem hoje uma jornada pelo trabalho digno. É um gesto de relevo numa altura em que há um ataque cerrado aos direitos conquistados e à devida dignidade dos trabalhadores europeus.
Em Julho deste ano teve lugar a Assembleia Mundial do Movimento de Trabalhadores Cristãos na qual estes grupos europeus estiveram presentes. A declaração final deste encontro ligou o actual aumento da exploração e do empobrecimento dos trabalhadores a uma desadequada “protecção social” que torna as pessoas “escravas de um sistema capitalista que é imoral”, referindo a necessidade de uma outra política centrada “na defesa da justiça, do bem comum e dando o poder aos povos” e na “distribuição justa da riqueza económica, social e cultural”. Trata-se, portanto, de lutar pela libertação dos trabalhadores daquilo que os acorrenta à indignidade. Mais informações aqui.Entre Ti e Mim
Entre ti e mim a igualdade,
mesmo obscuro, mesmo ausente,
entre ti e mim o espaço
do teu corpo imenso, irmão,
azul e áureo,
num infinito odor ardente, saboroso,
transviando-se, morrendo e renascendo,
mas sempre igual, igual em sua presença de olvido,
resolvido desde sempre e para sempre
e sempre inicial.Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
Que alegria ser a onda, a sua onda,
profunda, calada, verdadeira!
Que alegria ser a permanência leve
deste unânime deus ausente!— ANTÓNIO RAMOS ROSA, “A Igualdade do Deus Ausente”
Liberdade e Libertação
Segundo uma antropologia da liberdade [...] a sociedade tem a missão de criar, para todos, condições de liberdade, isto é, de constituir um mundo em que todos se sintam sujeitos e não objectos, enquanto partícipes da iniciativa política, económica, cultural, numa palavra, da iniciativa histórica, um mundo, pois, donde sejam banidas todas as formas de dependência alienantes, nas relações entre os indivíduos, as classes sociais, as raças, os sexos, os povos, os continentes.
[...] A abertura à liberdade dos outros estende-se necessariamente à liberdade de todos: ninguém se poderá considerar verdadeiramente livre enquanto houver um só homem oprimido.
A experiência da liberdade é, pois, acompanhada dum potencial de universalidade que ela projecta imediatamente para o mundo. Não posso escolher a minha liberdade sem escolher a libertação do mundo. [...]
Assim, o ideal de libertação pessoal é indissociável do da libertação do mundo; o projecto pessoal é indissociável do projecto histórico.
— GIULIO GIRARDI, Cristianismo, Libertação Humana e Luta de Classes