A Produção do Comum
Fazei silêncio e ouvireis o ruído das batalhas. Não há exterioridade possível a cultivar em tempo de combate. É preciso resistir, erguer a vida contra o poder sobre a vida. A tradição e o presente são aquilo que já não existe. O Museu não assegura a sobrevivência do que constantemente flui, se perde e se transforma. A fé não nos traz o repouso, mas a inquietude. Paz com Deus significa conflito com o mundo. A fé não acomoda, incomoda. Mantém-nos in statu viatoris. O dever das comunidades é de transportar “a responsabilidade da esperança” que está nela (1Pe 3,15). Temos de recusar ficar de fora e à margem: o devir cristão há-de fazer-se no interior dos campos e das formas da vida. Porque o que falta é a produção do comum. O que falta é acordar do sonanbulismo civil e religioso em que vivemos. O que falta é criar espaços de liberdade: fazer amizades, reflectir, rezar. O que é preciso é viver em estado permanente de paixão e fazer da vida a beleza, a procurar.
— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, Luz Desarmada
8 de Dezembro
Calcorreando o Largo da Portagem a caminho de uma aula na Faculdade de Letras hoje de manhã, ouvi de passagem o que um velho homem disse: “Amanhã é dia santo. Amanhã é dia da Mãe.” Nada bate a teologia popular portuguesa, tão concisa, tão certeira.
Household Chore and Religious Singing
All Dominican
Thomas’s theological identity is all Dominican, even if by no means are all Dominicans recognizable from a common profile, theological or spiritual. Meister Eckhart, who shared a teacher with Thomas in Albert the Great, could hardly differ more from Thomas in spirit, in style, and in some important matters of theological substance. To say that Thomas Aquinas is “all Dominican” is therefore not to say that he is stereotypically Dominican. There is no Dominican theological stereotype, the Dominican rule being a positive encouragement to diversity, personal and theological.
— DENYS TURNER, Thomas Aquinas: A Portrait
Conferências no Mosteiro de Santa Maria 2016-2017, “Viver uma Mística de Olhos Abertos”
Começam hoje as conferências no Mosteiro de Santa Maria para o ano entre 2016 e 2017. A casa das Monjas Dominicanas no Lumiar recebe estas palestras a partir das 15:30, seguidas de debate e eucaristia:
28.10.2016
José Tolentino Mendonça, “Rezar é abraçar a vida como ela é”12.11.2016
Luís Miguel Cintra, “O desejo como arte e a arte como Fé? (com a ajuda da leitura da Ode de Camões, ‘Pode um desejo imenso’)”10.12.2016
Alice Vieira, “Manual de instruções para a construção de um presépio”14.01.2017
Mateus Peres, OP, “O quotidiano como lugar teológico”11.02.2017
José Nunes, OP, “Em Deus, ‘os lugares do impossível se deslocam’ – Uma leitura de José Augusto Mourão”08.04.2017
José Frazão, SJ, “Esta certeza de que somos filhos”20.05.2017
Emília Leitão, “O desenho visível e invisível da vida”03.06.2017
José Tolentino Mendonça, “O barro e o tesouro, parábola da história e do Reino”
Viver n’Ele
Este foi o exemplo que Ele nos deu com a sua vida e é nisso que nós acreditamos.
— S. POLICARPO DE ESMIRNA, “Carta de Policarpo aos Filipenses”
Não à Guerra!
Um excerto do discurso do Papa Francisco, ontem em Assis, na jornada de oração pela paz “Sede de Paz: Religiões e Culturas em Diálogo”:
Colocamo-nos à escuta da voz dos pobres, das crianças, das gerações jovens, das mulheres e de tantos irmãos e irmãs que sofrem por causa da guerra; com eles, bradamos: Não à guerra! Não caia no vazio o grito de dor de tantos inocentes. Imploramos aos Responsáveis das nações que sejam desativados os moventes das guerras: a ambição de poder e dinheiro, a ganância de quem trafica armas, os interesses de parte, as vinganças pelo passado. Cresça o esforço concreto por remover as causas subjacentes aos conflitos: as situações de pobreza, injustiça e desigualdade, a exploração e o desprezo da vida humana.
Dos Sentidos ao Intelecto
[N]ihil est in intellectu quod non sit prius in sensu.
[N]ada está no intelecto que não estivesse primeiro nos sentidos.— S. TOMÁS DE AQUINO, OP
Uma Cama por Uma Noite
Um parágrafo para guardar activamente na memória da crónica do padre Anselmo Borges, publicada no sábado passado no Diário de Notícias:
É preciso lutar de modo lúcido e enérgico pela justiça no mundo, transformando as estruturas sociais, mas seria intolerável, a pretexto de agudizar as contradições sociais para acelerar a revolução, não acudir à criança esfomeada nem ajudar o desgraçado caído na valeta. Era o dramaturgo B. Brecht, marxista lúcido e que conhecia bem a Bíblia, que tinha razão: “Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da Rua Vinte e Seis com a Broadway,/nos meses de Inverno, há um homem todas as noites/que, suplicando aos transeuntes,/procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem./Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores. /Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Não abandones o livro que to diz, homem./Alguns seres humanos têm cama por uma noite,/durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Mas não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração.”
Pai Nosso
Um dos comentários de Santo Agostinho sobre os Salmos deixou-me a pensar sobre as muitas maneiras de dizer “Pai nosso”, ou seja, de dizer “fraternidade”:
Irmãos, nós vos exortamos ardentemente à caridade, não só para convosco, mas também para com aqueles que estão fora [...]. Quer queiram quer não, são nossos irmãos. Só deixarão de ser nossos irmãos, se deixarem de dizer: “Pai nosso”.
Patiently, from Seeds to Strong Plants
The word patience comes from the Latin verb “patior” which means “to suffer”. Waiting patiently is suffering through the present moment, tasting it to the full, and letting the seeds that are sown in the ground on which we stand grow into strong plants.
— HENRI NOUWEN, Bread for the Journey
A Liberdade da Libertação
Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão.
— Gal 5,1
The Beginning of Love
The beginning of love is the will to let those we love be perfectly themselves, the resolution not to twist them to fit our own image. If in loving them we do not love what they are, but only their potential likeness to ourselves, then we do not love them: we only love the reflection of ourselves we find in them.
— THOMAS MERTON, OCSO, No Man Is an Island
No Culminar da Páscoa
Henry Haig, Pentecost (1972–73), vitrais da Catedral de São Pedro e São Paulo, Bristol.
No Pentecostes culmina o Tempo Pascal, a Páscoa. É a festa da fraternidade, a celebração espiritual da unidade na diferença. Falavam-se muitas línguas, mas “ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua” (Act 2,6). Tal impede-nos de cair na idolatria da Igreja como instituição e até de Jesus como indivíduo. Em vez de instituição dizemos comunidade. Em vez de Jesus dizemos Cristo, o crucificado ressuscitado nessa comunidade. Por isso, Paulo nos diz: “Pois, como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, constituem um só corpo, assim também Cristo.” (1Cor 12). Na fraternidade não cabe aquilo que a nega: a exploração e a opressão. Daí que quando Paulo oferece exemplos dos membros deste corpo mencione os “escravos” e os “livres” sem referir os proprietários de escravos e os adversários da liberdade. Este corpo presente, animado por um Espírito que é simultaneamente legado e fruto, encontra o comum na humanidade que caminha e se eleva.
Bem Comum e Interesses Privados
Santo Agostinho, bispo africano que viveu nos séculos IV e V, não se encolheu perante a iniquidade da escravatura. A privação da liberdade e a obrigação de servidão eram, para ele, um mal humano, um mal social. A cidade tinha o potencial de concretizar a ideia de que o bem humano só pode ser encontrado no bem de toda a sociedade, no bem comum. Na sua regra, responde à hierarquia portuguesa da Igreja Católica sobre a reavaliação da necessidade dos contratos de associação de colégios privados. No capítulo 5, diz que o cristão coloca o bem comum antes do seu próprio interesse, não o seu próprio interesse antes do bem comum: “Sabe, então, que quanto mais te dedicares à comunidade em vez de aos teus interesses privados, mais terás avançado.”
O Pó e a Cinza sobre Job
Mahfuzul Hasan Bhuiyan, Black [injured coal worker, Dhaka, Bangladesh] (2014).
No dia da comemoração litúrgica de Santo Job:
Eu dizia: “Escuta-me, deixa-me falar!
Vou interrogar-te e Tu me responderás.”
Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti,
mas agora vêem-te os meus próprios olhos.
Por isso, retracto-me e faço penitência,
cobrindo-me de pó e de cinza.— Jb 42,4-6
Deus como Apetrecho
Deus tem as costas largas, já se sabe. Iam-se sucedendo os deputados brasileiros que justificaram o seu voto a favor do golpe com deus (que sou obrigado a grafar com letra pequena) e foi-se tornando nítida uma imensa mancha de idolatria religiosa, termos contraditórios no terreno cristão. Essa idolatria que pretende investir-se de autoridade é uma imagem de um autoritarismo de classe. Nem falo da segunda prescrição do Decálogo, apenas do facto de que, quando alguém invoca deus como justificação ou desculpa, está a usar deus como um apetrecho. Não me admirava que estes deputados, proprietários privados dos meios divinos, assinem Bíblias para oferecer como se fossem os seus autores.
Tertúlias Dominicanas
No próximo dia 20 de Abril começa um ciclo de tertúlias dominicanas no Convento de Cristo Rei, no Porto. Este primeiro encontro, que fui convidado a preparar, é sobre Santa Catarina de Sena, mulher, leiga, mística do séc. XIV que tem ocupado algumas das minhas reflexões ao longo dos anos.
A Páscoa no Paquistão
As cristãs e os cristãos do Paquistão viveram ontem a sua Páscoa. Um bombista suicida talibã matou mais de setenta em Lahore, na região do Punjab. A maioria eram mulheres e crianças. Como viver depois da morte? Eis a questão pascal, quando o medo e o ódio podem consumir as testemunhas de uma violência como esta. Que se elevem, cristãs e cristãos, muçulmanas e muçulmanos, quem quer que se decida a deter e a rejeitar a política da morte. A do terrorismo do Jamaat-ul-Ahrar, na sua agonia por um poder anti-democrático na teia tensa da sociedade paquistanesa. Mas também a da máquina de guerra imperialista dos EUA, cujos drones foram ceifando vidas no norte do país e instigando o terror, ano após ano.
Noite Quase Transparente
pense-nos o teu lado,
as feridas abertas do imaginário sem freio,
pastor que guardas a porção de terra
apenas entrevista,
junta ao nosso passo a tua bênção,
a tua misericórdia e a tua água— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Visita da Noite”