O mal de uma certa forma de tradição religiosa é de se situar na linha da explicação, de se limitar unicamente à explicação para evitar a energia transformadora. Melhor ainda, certa tradição religiosa justifica o mundo como ele é, e Deus consagra um momento da sociedade e do mundo, dando-lhe uma auréola e a pretensão do definitivo, do eterno. Fizemos muitas vezes da Igreja, dos sacerdotes e de Deus a capa religiosa, a benção suprema do mundo dividido em classes e em raças desiguais, duma sociedade estruturada a partir duma hierarquia, do comando e da sujeição, dos chefes e dos súbditos, dos senhores e dos escravos.
O que nos é pedido por certas pessoas, caracterizadas pela incultura presunçosa, é a docilidade a respeito do mundo a que estamos habituados. O cristianismo deveria ser a justificação religiosa, o óleo benéfico dum mundo em que uns comandam e os outros obedecem. A Igreja teria por missão dar a sua raiz sagrada ao poder dos chefes bem pensantes, alimentados, educados na docilidade, no bom espírito, e exercitar as massas para a obediência. e enquanto o clero pudesse consentir nesta sujeição mundana e viver na domesticidade espiritual não sairia do seu papel e faria religião. E quando os sacerdotes se recusassem a vergar-se diante da benção espiritual a certos interesses, a certas civilizações, sairiam do seu papel e já fariam religião. Não apresentemos a doutrina de Jesus Cristo como essa justificação espiritual.
[...]
É por isso que retorno agora a resposta de Jesus: Nem ele nem os seus pais pecaram, isto sucede para que sejam manifestados nele as obras de Deus; nem ele nem os seus pais pecaram, isto sucede para que nele brilhe a glória de Deus. Que quer dizer então Jesus Cristo? Que não é nem poderia ser a explicação do mundo. [...] Afirmemo-lo, mais uma vez, categoricamente: Deus não explica, Deus não justifica que o mundo seja assim, como nós o vemos, mas, pelo contrário, Deus é um apelo para que nada fique assim. Deus é um apelo para que tudo mude, para que tudo se transforme, para tudo se inflame.
Não nos resignemos nunca a que alguns homens não vejam, ou não ouçam, ou não falem. Não nos resignemos nunca a que alguns homens sejam explorados por outros, ou pelos seus próprios instintos.
— JEAN CARDONNEL, OP, Não ao Intolerável
Deus, Exigência de Libertação
A Alegria no Tempo da Colheita
Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor. Todo o calçado ruidoso da guerra e toda a veste manchada de sangue serão lançados ao fogo e tornar-se-ão pasto das chamas. Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.
— Is 9,2-5b
Unquiet Heart
That is why faith, wherever it develops into hope, causes not rest but unrest, not patience but impatience. It does not calm the unquiet heart, but is itself this unquiet heart in man. Those who hope in Christ can no longer put up with reality as it is, but begin to suffer under it, to contradict it. Peace with God means conflict with the world, for the goad of the promised future stabs inexorably into the flesh of every unfulfilled present.
— JÜRGEN MOLTMANN, Theology of Hope
Um Lírio entre Cardos
Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini (1850).
Passam os dias marcados pelo cinismo. Nessa passagem, irrompe uma celebração incompreendida, mesmo entre cristãos. No séc. V, Teódoto de Ancira fez uso de uma expressão que vem do Cântico dos Cânticos para falar da ausência de mácula em Maria. Escreve ele que ela é “como um lírio entre os cardos” (2,2a). No diálogo apaixonado desse livro bíblico, no qual o desejo e o corpo participam numa sedução como conhecimento entrelaçado a dois, é dessa forma que o amado se dirige à amada. Conseguimos viver no presente este amor que não se deixa desfigurar nem vencer? Conseguimos pelo menos concebê-lo? O fundo da festa de hoje é a virtude incorruptível do amor, tal como a encontramos em Maria e depois em Jesus, tal como a lemos nas palavras do Cântico dos Cânticos: “Grava-me como selo em teu coração, como selo no teu braço, porque forte como a morte é o amor, implacável como o abismo é a paixão; os seus ardores são chamas de fogo, são labaredas divinas. Nem as águas caudalosas conseguirão apagar o fogo do amor, nem as torrentes o podem submergir. Se alguém desse toda a riqueza de sua casa para comprar o amor, seria ainda tratado com desprezo.” (8,6-7).
Ali, no Firmamento
Ali não haverá nenhum inimigo nem se perderá nenhum amigo.
— S. AGOSTINHO, “Sermão 256”
OP: O Mistério que Vigiamos (4)
I
abençoa, Deus de festas
esta festa de Irmãs
à volta daquela que no amor
nos gerou para socorrer e animar
a esperança que vaciladá ao nosso corpo
e às nossas declarações de amor
braços para levantar do chão os abatidos
mãos para curar as chagas
dos que não têm asilo nem sossego nesta vidaabençoa a nossa irmã maior
na sua festa de acção de graças
guarda-a a ela e a nós
no amor e na alegria do EncontroII
Rodeados por uma nuvem de testemunhos
a que se junta a nossa irmã Teresa
nós te oferecemos o pão e o vinho
frutos do desejo, do trabalho e do perdão
que transformando este pão e este vinho
na vida dada de Jesus até ao fim
nos disponha o Espírito a caminhar
na paciência e na humildade
para cumprir no tempo a tua obra
de misericórdiaIII
nós te damos graças, Deus,
pelo mistério que vigiamos
e nos mantém de pé a caminho da Páscoa
dá o sal e a luz bastante
à nossa vida insossa e escura
dá ao nosso corpo de irmãs
o gosto da sabedoria
a palavra de fogo
que abra caminhos não andados
dá a graça fraterna da comunidade
alargada à terra e ao céu
que o teu Filho ligou
e o Espírito guarda— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Teresa de Saldanha”
OP: Nos Corredores Escuros do Tempo (3)
entrai pela mão de Catarina
na cela do conhecimento de vós mesmosdescobri como sois amado
como Deus se enamorou da beleza da sua criaturadescobri o segredo da paz e das mediações
admirai o dinamismo,
a fidúcia e a heroicidade
que fizeram de Catarina pregadora insigne
pedi a liberdade de falar e de escutar
e a coragem de mergulhar
nos corredores escuros deste tempo
onde a Luz aguarda os nossos olhos— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Catarina de Sena”
OP: Morada Nossa (2)
Deus, nós vimos do mar e da montanha
e nenhum lugar nos é residência
porque és tu a nossa morada,
o espaço do nosso desejo e das nossas metamorfosesuma luz nos trouxe, um caminheiro
nos deu o nome e o modo
de estar no mundo nomeando-te
de longe vimos,
antiga é a memória dos laços de famíliaguarde-nos a figura do teu anjo
não nos afogue o excesso da figura ou da visão
que leva à violência cega
que o teu anjo nos ajude
a articular, no tempo,
a palavra e o olhar que pões nas coisas,
o masculino e o feminino,
as estrelas e a areia,
o fogo e a águae dar-te-emos sempre graças,
Deus que à luz destas pedras e deste dia
nos abençoas e nos guardas— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “S. Domingos” (1991)
OP: Visitação dos Dias Pardos (1)
Deus, visitação dos nossos dias pardos,
palavra dos começos e do partir que não acaba,
liberta o corpo desta porção que a tua mão plantou
e Domingos regaprepara os nossos olhos para os caminhos a abrir,
liberta a nossa fala das violências do instante
e mais ainda da ruína do esquecimento,
da morte que vem só,
mais insidiosa que a violência das catástrofes;
protege as nossas diferenças,
não a indiferença que nos arrasta apáticosactiva a nossa imaginação e a nossa memória
em direcção aos horizontes que o nosso andar deslocamvisite-nos a tua claridade neste fim de dia, da vida
para que livres dos demónios das querelas,
do que nos fixa à monotonia do sono
e de todas as noites que se não esclarecem,
te dêmos em todo o tempo graças
a ti, Deus que vens em Jesus Cristo e no Espírito
e nos acordas para o país do Dia,
hoje e no tempo todo da nossa fé na esperança— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “S. Domingos” (1985)
Withdrawing
They withdraw from themselves, and all things withdraw along with this.
— HENRY SUSO, OP, The Little Book of Truth
Jubileu de Celebração e Renovação (OP, 1216-2016)
Tiziano, San Domenico (c. 1565).
Iniciam-se amanhã as celebrações dos 800 anos da Ordem dos Pregadores (ou Dominicana), à qual pertenço como leigo, em diversos lugares no mundo. O envio para a pregação do Evangelho é o centro da espiritualidade dominicana e por essa razão foi escolhido como tema central deste jubileu que termina a 21 de Janeiro de 2017. Não se trata de uma mera recordação da fundação da Ordem a 22 de Dezembro de 1216. O principal propósito é promover a sua renovação através da oração, da vida comunitária, e do estudo.
Santidade, Separação de Si
Dia de todos os santos, meditação sobre as vidas que as mortes não venceram, momento de uma palavra que se faz nova. A santidade é de Deus, aberta a quem com Deus se confunda. No hebraico do Antigo Testamento, a santidade encontra a sua raiz na palavra qadash, que quer dizer “separar”. Mas de quem ou do quê se separa Deus na sua santidade? Soam os alertas da exclusão. Com Jesus, percebemos essa ideia de separação desta forma: Deus separa-se de si, não se basta nem se arroga, extravasa-se, vive para fora.
Tu e Eu
Tu, Divindade eterna,
és vida
e eu sou morte.
Tu és sabedoria
e eu sou ignorância.— S. CATARINA DE SENA, OP, “Oração 10”, 14 Fev. 1379
(trad. Sérgio Dias Branco, OP, a partir da trad. para inglês de Suzanne Noffke, OP)
A Herança de Cristo
Que é o homem para que Vos lembrei dele? Que novo e grande mistério me envolve! Sou ao mesmo tempo pequeno e grande, humilde e sublime, mortal e imortal, terreno e celeste. Devo ser sepultado com Cristo, ressuscitar com Cristo, participar na herança de Cristo, tornar-me filho de Deus e, mais ainda, Deus mesmo.
— S. GREGÓRIO DE NAZIANZO, “Oração 7”
Diálogo Cristão-Budista em Coimbra
Dando continuidade a um encontro e diálogo com vários séculos — no qual a cultura portuguesa foi pioneira — e particularmente vivo na actualidade, juntar-me-ei a Paulo Borges neste evento organizado pelo Círculo do Entre-Ser e Maitreya: Núcleo de Estudo do Dharma de Coimbra, acolhido pelo Instituto Universitário Justiça e Paz.
Falarei como leigo dominicano sobre o texto do Mestre Ajahn Buddhadasa, “As Quatro Moradias Divinas: Amizade, Compaixão, Alegria Apreciativa e Equanimidade”. Paulo Borges falará sobre a Carta aos Filipenses onde Paulo fala do auto-esvaziamento (kenose) de Cristo, bem como sobre o “Sermão 52” do dominicano Mestre Eckhart sobre a bem-aventurança da pobreza em espírito.
A Ressurreição Acontece Hoje
O n.º 375 do Laicado Dominicano contém uma tradução que fiz a partir de excertos de uma entrevista a Timothy Radcliffe, OP antigo Mestre da Ordem dos Pregadores, conduzida por Lucette Verboven e incluída no livro The Dominican Way (Londres: Continuum, 2011). Dei-lhe o título “A Ressurreição Acontece Hoje”, que é a primeira frase da resposta à última pergunta (“Dizes que não é suficiente recontar a história da ressurreição, mas que precisamos também de uma iniciação na experiência. O que queres dizer?”). Deixo uma citação:
A religião é muitas vezes associada a um certo tipo de moralidade de que não gostamos?A moralidade é fazer aquilo que mais desejamos fazer. Tomás de Aquino disse que as pessoas são fundamentalmente boas e procuram a bondade que é Deus. Corre mal quando nos deixamos capturar por pequenos desejos que não nos podem satisfazer. D. H. Lawrence coloca isso desta forma: “A ocupação dos nossos grandes pensadores é dizer-nos dos nossos desejos profundos, não continuar a guinchar os nossos pequenos desejos aos nossos ouvidos” (“A propósito de O Amante de Lady Chatterley”). Ensinar uma visão moral não quer dizer andar a dizer às pessoas o que é permitido e o que é proibido. É convidar as pessoas a descobrirem a luz dos Evangelhos, o seu apetite fundamental pelo bem.
O Laço Rompido
A nossa vida escapou
como um pássaro do laço dos caçadores;
rompeu-se o laço e nós libertámo-nos.— Sl 124(123)
Como um Homem que Não Existe
O Abade Agheras disse-me: “Um dia fui visitar o abade Poemen e disse-lhe: ‘Morei em todos os lugares, mas em nenhum encontrei repouso: onde achas que devo viver?’ O ancião respondeu: ‘Nunca num lugar deserto, nunca. Vai viver num lugar populoso, no meio da multidão, permanece e conduz-te como um homem que não exista. Assim conseguirás o repouso soberano.‘”
— Ditos dos Padres do Deserto
Levantados do Chão
Mas o nosso Deus diz-nos para nos levantarmos e sermos livres.
— TIMOTHY RADCLIFFE, OP
Afazeres Humanos
Regressado das cerimónias fúnebres da mãe de um amigo, lembrei-me de um episódio recente. Por vezes pensa-se que os padres sabem de antemão o que dizer numa ocasião destas, debitando chavões fáceis e vazios sobre a morte. Nem todos. Um consciencioso padre tinha que falar depois de um acidente que vitimou um miúdo e, dada a amizade que nos une, convidou-me a ajudá-lo. Faltavam-lhe as palavras. Nestas situações (e esta era particularmente trágica) é comum ficarmos sem palavras. Mas há pequenos gestos, que nos arrancam ao entorpecimento, que incitam a continuação da vida, ajudando quem diz adeus para que a perda não os engula. Enviei-lhe uma frase da carta que Basílio de Cesareia escreveu à viúva de Nectário: “Não meças a tua perda por si só; se o fizeres parecerá intolerável; mas se levares todos os afazeres humanos em conta vais descobrir que algum conforto é derivado deles.” No contexto definido pela frase, “afazeres humanos” é uma expressão que evoca, não apenas o que fazemos, mas também o modo como aquilo que fazemos nos vai fazendo humanos.
A Espiritualidade no Cinema
Amanhã estarei na Paróquia de S. Pedro, em Cantanhede, para falar sobre cinema e espiritualidade, ou seja, arte e imaginação, criação e política. Agradeço o convite caloroso e livre do pe. Luís Marques, que também convidou José António Pinto, “Chalana”, para esta Quinzena da Comunidade “Igreja em Saída” para falar sobre solidariedade.
O Tempo da Ceifa
“A terra produz por si, primeiro o caule, depois a espiga e, finalmente, o trigo perfeito na espiga. E, quando o fruto amadurece, logo ele lhe mete a foice, porque chegou o tempo da ceifa.”
— Mc 4,27-29
No Nosso Corpo
José Clemente Orozco, Cristo destruye su cruz (1943).
Em tudo somos oprimidos, mas não esmagados; andamos perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados. Levamos sempre e em toda a parte no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, a fim de que se manifeste também no nosso corpo a vida de Jesus.— 2Cor 4,8-10
Conhecedor de Mim Mesmo
Fazei com que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, que eu Vos conheça como de Vós sou conhecido. [...] Esta é a minha esperança, e por isso ouso falar; e nesta esperança me alegro com uma alegria salutar. Tudo o mais nesta vida, tanto menos se deveria chorar quanto mais o choramos; e tanto mais se deveria chorar quanto menos o choramos.
— S. AGOSTINHO, Confissões
Ora
Ora ninguém se pode tornar apto para a vida futura, se desde agora não se preparar para ela.
— S. AGOSTINHO, “Comentário sobre o Salmo 148”
Do Cântico Novo
“Como eu vos amei.”
É este amor que nos renova, transformando-nos em homens novos, herdeiros do Novo Testamento, cantores do cântico novo.
— S. AGOSTINHO, “Tratado sobre o Evangelho de São João”
A Cruz que Feriu a Morte
Talvez vos confunda a grandeza da minha paixão, de que fostes responsáveis. Não temais. Esta cruz não Me feriu a Mim, antes feriu a morte.
— S. PEDRO CRISÓLOGO, “Sermão 108”
A Palavra no Dizer e no Sentir
A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração.
— Rm 10,8b
Domingos: Governo, Espiritualidade e Liberdade
Fr. Bruno Cadoré, Mestre da Ordem dos Pregadores, escreveu recentemente um comentário no âmbito do Jubileu da Ordem (1216-2016) sobre governo, espiritualidade, e liberdade — uma meditação conduzida a partir do fundador, Domingos de Gusmão. A tradução para português foi feita por mim e pode ser lida aqui ou aqui. Disponibilizo a visualização do texto no fim desta postagem.
Trata-se de um documento interno, mas público, que discorre sobre o governo da Ordem. Mas, por isso mesmo, não deixa de interpelar todos os cristãos, assim como qualquer ser humano preocupado com a necessidade e a dificuldade de vivermos em comunidade, encontrando a nossa plena liberdade nessa arte de conviver (viver com). Lê-se do documento que a fraternidade, sinal da nossa permanência na palavra de Jesus, fonte de verdade e da libertação, tem reflexos na centralidade e centralismo do processo democrático de discussão, deliberação, e acção:
Por esta razão, a nossa “vida religiosa capitular” é essencial para a nossa espiritualidade: cada membro da comunidade tem a sua própria voz, comprometendo-se com a busca comum pelo bem de todos, ajustada à missão de ser servidor da Palavra, e participando plenamente no governo da Ordem. Isto é democrático, não porque consista na designação do poder da maioria, mas porque consiste, antes, na busca democrática pela unanimidade. Este exercício da vida em comunidade é exigente, sabemos disso, porque chama cada um a nunca se esquivar da sua própria participação no diálogo envolvido nesta busca. Este exercício da vida em comunidade é exigente, sabemos disso, porque chama cada um a nunca se esquivar da sua própria participação no diálogo envolvido nesta busca. É exigente também, porque nos compromete a expressar, na verdade mais completa possível, posições e argumentos, mesmo a clarificar desentendimentos entre irmãos, mas com a certeza de que ninguém nunca será reduzido a uma opinião ou posição expressa, sendo sempre em primeiro lugar acolhido e amado como um irmão. É exigente, além disso, porque depois da busca paciente do ponto mais próximo possível da unanimidade, exige que todos os membros de uma comunidade participem com determinação na realização da decisão tomada por todos.
O Dia Novo
Cresço na clareira de um homem que é uma palavra
— DANIEL FARIA, Homens Que São como Lugares Mal Situados
Ao (Des)Abrigo do Nome (5)
conduz-nos, Deus,
de questão em questão,
de fogo em fogo,
sem satisfações que ao tempo bastem
e a nós assombrem;
que passemos da catalogação
do que julgamos conhecer
ao poço dos enigmas infindáveis
onde o rosto é para sempre fundo,
desmentido, diferido
não nos mure a estrutura em espelho
que escamoteie a procura da verdade,
mas que o dom da tua palavra nos visite
como o canto do galo,
a lembrar o dia novo,
o perdão e a graça— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “de questão em questão”
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Ao (Des)Abrigo do Nome (4)
seja o teu rosto
o brasão da casa,
a alegria, o mosto
na aflição, a asasejam os traços
do teu nome em fuga
o rebento, o laço
com o sol, a uvadá à nossa vida
a graça de ser
no corpo em partida
tendas de acolhere que ouçamos vir
o teu dia, o som
de paisagens verdes,
promessas do dom— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “o rosto e a casa”
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Ao (Des)Abrigo do Nome (3)
esta é a mesa da nossa comunhão
o pão, o vinho e a memória
que cada um transportaesta é a mesa do nosso conhecimento
as bodas do nosso advir e da nossa páscoa:
o corpo de Deus ao nosso corpo dado— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “comunhão”
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Ao (Des)Abrigo do Nome (2)
que te digamos, Deus
como o lugar-espelho
da união intrínseca dos contrários
e dos ritmosque te digamos como o rio
expondo a ideia
de uma identidade em mutação,
um veio em fuga
na textura polémica das coisasque te digamos
inscrevendo-nos
no arco da vida e da morte,
homens feitos algo infantesque te digamos
como a flecha que reúne
e abre um horizonte sem clausura,
como o possível do mundo que se contaque te digamos
no turbilhão do que permanentemente flui,
no que nos une e nos desune,
Deus, poeta das origens,
pedagogo da esperança e do amor
que em nosso peito arde
e que a memória do Espírito
cada instante reacende— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “dicção de Deus”
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“Ao (Des)Abrigo do Nome”: (1)
Ao (Des)Abrigo do Nome (1)
Deus que vens de Deus,
horizonte da nossa linguagem e do nosso desejo;Deus que anunciamos
na espessura do que em nós é riso
e choro, ao mesmo tempo infiguráveis;Deus, instante fugaz
da sede e da fome saciadas, diferidas;que descubramos no corpo dos outros
os traços do bem que procuramos e perdemos;que a nossa vida te reconheça
pela maneira como por ti se vê reconhecida
na teia do que passa e permanece,tu que és aquele que há-de vir,
e Deus connosco— JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Deus que vens de Deus”
Origem, Recomeço
A origem — agora:
coisa mínima, alguém te chamou —
Há um verso antigo que regressa à invenção
e tudo poderá talvez recomeçar— MANUEL GUSMÃO, Migrações do Fogo
O Nada de Deus
Torna-te como criança:
faz-te surdo e cego!
Torna-te nómada,
atravessa o que é ser,
e o que é nada!
Abandona o lugar,
abandona o tempo
abandona as imagens.
Se seguires sem destino
pelo trilho estreito
alcançarás o centro deserto.Ó minh’alma
sai para fora, Deus entra!
Funde todo o ser
no nada de Deus.
Derrama-te no caudal sem fundo!
Se saio de ti
tu vens até mim.
Se me perco
é a ti que encontro.
Oh quem pudesse medir tua vastidão!— MESTRE ECKHART, OP
Dois Modos da Vivência Religiosa
Estes três parágrafos de um estimulante estudo de João Vasco Fagundes dão que pensar, porque através do exemplo que ele recolhe de Hegel apontam com clareza para uma religiosidade entendida de modo materialista e dialéctica, isto é, uma religiosidade que emerge da história e nela se vai inscrevendo, decidindo, e significando:
No plano da materialidade, nenhum sistema se encontra fixado em qualquer das configurações que fáctica e positivamente ostenta nas diversa fases e tapas do seu devir. O processo de transformação historicamente determinado, através do qual os sistemas evoluem e se desenvolvem, é a verdade, é a realidade do seu ser.No plano do conhecimento, porque o inicial indeterminado não reflecte ainda o concreto real no seu desenvolvimento, a verdade não pode estar no princípio, mas sim no processo de elevação racional ao concreto espiritual, no saber do concreto na sua riqueza desenvolvida sempre em aberto.
É disso mesmo que Hegel nos fala quando, a propósito da “Ideia absoluta” enquanto universal concreto, recorre a uma comparação com dois modos da vivência religiosa: “a Ideia absoluta é, sob este aspecto [o de um universal concreto], de comparar com o ancião que diz as mesmas frases religiosas do que a criança, mas para quem elas têm um significado de toda a sua vida. Se também a criança entende o conteúdo religioso, para ela este vale, contudo, apenas como alguma coisa fora da qual ainda fica a vida toda e o mundo todo.”[1]
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[1] João Vasco Fagundes, A Dialéctica do Abstracto e do Concreto em Karl Marx (Lisboa: Grupo de Estudos Marxistas, 2014), 123.
A Garden Amidst the Flames
O Marvel! A garden amidst the flames.
My heart has become capable of every form:
it is a pasture for gazelles and a convent for Christian monks,
and a temple for idols and the pilgrim's Kaa’ba,
and the tables of the Torah and the book of the Quran.
I follow the religion of Love: whatever way Love’s camels take,
that is my religion and my faith.— IBN ARABI, Tarjuman al-Ashwaq
O Que Quer Dizer Ser Humano?
A Olinda Marques da Liga Operária Católica - Movimento de Trabalhadores Cristãos pediu-me um pequeno texto sobre a minha experiência de catequese. Como lhe disse, não tive tal experiência — embora tenha tido formação dominicana. O meu percurso foi feito à sua margem e, pelo que vejo em muitos casos, a catequese pode ter efeitos perniciosos, de fechamento da imaginação, de desatenção à realidade, de renúncia da crítica. Ela insistiu e escrevi este parágrafo que foi publicado agora na secção “Em Foco” da revista JO: Juventude Operária:
Aprendi o valor da catequese com uma amiga muçulmana de nome Noorin. Bem sei que a catequese é normalmente entendida como um simples processo de instrução no fundamental de uma tradição religiosa, nomeadamente a cristã. Mas na raiz da palavra está outra acção: fazer soar. Além de referências da tradição islâmica, ela usa filósofos gregos e pensadores cristãos nas sessões que coordena no Canadá. A questão central colocada às crianças e aos jovens é esta: o que quer dizer ser humano? Através do desenvolvimento de narrativas, da partilha de experiências, e de um intenso diálogo, as respostas fazem soar a humanidade comum dos participantes, como promessa e projecto, ligando a busca do sentido à escolha da acção, o ser ao agir. Sejamos obreiros do mundo anunciado por Jesus crucificado, sem cativos nem iniquidades — um mundo que realize a nossa humanidade.