Emet

25.12.2013

Veio o dia habitar a noite.

Um Poema para Outro Natal

22.12.2013

Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.

ANTÓNIO RAMOS ROSA, “Nascimento Último”

A Vida da Esperança

11.12.2013

Estamos no Advento, um período de espera activa, de escuta atenta, de preparação e expectativa, de abertura ao Natal. Este é um tempo grávido, de esperanças, no qual a esperança pode ganhar outro corpo. A vigília de ontem, no Instituto Universitário Justiça e Paz, pretendeu criar um espaço e um momento férteis que nos permitissem meditar sobre a nossa fé e o nosso presente, pondo-nos a olhar para os dias que esperamos. Deixo a reflexão que li nessa ocasião:

Ouvimos dizer que a esperança é a última coisa a morrer. O mundo ensina-nos que costuma ser a primeira. Sem dúvida porque a curta esperança que vai enchendo os nossos dias é falsa, evaporando-se sucessivamente para dar lugar a outra, e a outra, numa cadeia de que nos precisamos de emancipar. É uma esperança que entope o quotidiano sem deixar espaço para imaginarmos outro mundo. Esta esperança morre porque a verdadeira esperança não se sustenta a si própria, mas necessita de algo que a sustente: um ideal, um projecto, um horizonte de fraternidade, igualdade, paz, e justiça (que constitui o cerne da pregação de Jesus). Se a esperança envolve uma vigorosa perseverança, envolve também necessariamente uma crença fundamentada, com raízes concretas. Esta esperança não é a última a morrer. É aquela que não pode morrer, já que se coloca contra a própria morte e do lado da vida. No Didaqué, obra de instrução cristã compilada onde hoje é a Palestina e a Síria nas primeiras décadas depois de Cristo, lemos logo no início: “Existem dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois.” A via da morte é a da desanimação, da rotina, do fechamento, do definitivo, da opressão, do fim da história. A via da vida é a da ressurreição, da criatividade, da abertura, da transformação, da libertação, da história por fazer. A esperança é a imagem da vida corajosa (Mt 28,10) e abundante (Jo 10,10), daquela que recusa o medo que aprisiona o presente e o futuro, daquela que faz nascer uma nova humanidade.

No Cântico da Vida Diferida

11.12.2013

Deus, ensina ao nosso corpo
o seu caminho incerto e frágil
e a humanidade a fazer chegar
da condição humana

que viver seja habitar esse lugar
incerto e frágil da abertura,
das relações que alteram,
das manifestações mais altas do humano,
não da violência cega e do dinheiro que faz escravos

empresta ao nosso corpo
o corpo do teu Cristo ressuscitado
que nos congrega
para as fainas do teu Reino e da Terra Prometida,
Deus que ressuscitaste Jesus dos mortos,
por quem vem o Espírito que dá a vida
e como um nó nos une
no cântico da vida diferida e na esperança.

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Vazio Verde”

Cantai a Seiva e o Arado

10.12.2013

Cantai a seiva que sobe das raízes,
O arado do tempo cortando o nevoeiro;
Cantai a vida que sangra e incendeia,
Vós todos que lavrais a terra, tecelões e pedreiros

Entrai na força escondida do desejo,
Domadores de cavalos, aguadeiros,
Pois vossas mãos acenderam candeias
E vossos olhos alumiaram a noite

Trazei à taça da vida nova que se anuncia
Os trapos velhos das dores enterradas;
Joalheiros de dedos magoados,
Vós todos que esperais o parto das sementes

Assinalai a pedra onde caístes
E a madeira em que vos crucificaram:
Porque há música nos ritos da tortura
Que canta o dia novo que não tarda

Enquanto não sabemos o caminho,
Cantemos já o dom de caminhar;
Se estamos juntos não teremos medo:
Alguém no invisível nos espera

Plantemos flores à beira do abismo
Há-de haver no deserto um lugar de água
Alguém que nos chame pelo nome
E nos acolhe ao termo da viagem.

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Salmo”

Celebração das Esperanças (Vigília)

08.12.2013

Esperamos

09.12.2013

Esperamos todos
o dealbar de um rosto
a aparição de outra coisa
entre o chão de limos e o rumor dos freixos.

Esperamos
às portas fechadas do mar
a onda favorável que nos leve ao outro lado
o sopro redentor
o expansivo meio em que a alegria nasce
à espera do fulgor estamos
colados ainda às sebes do negrume
às lívidas camas dos hospitais
que as bocas de sombra entredevoram.

Esperamos
o impossível voo
a matéria dos anjos que não desertaram
e dão ao corpo o transporte
para além do peso e da cinzentez das horas.

Esperamos
o fim das prescrições sem nome
a cal em que o desenho dos seus pés se inscreva
e o seu calor nos toque
solte-se a garganta enfim
das foices de silêncio que a cercavam
e o teu Nome nos cubra da luz
que se faz carne
e traz no seu bojo nascimentos
do mais fundo da noite do mundo desejados.

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Natal”

Cruzes, Credo

27.11.2013

No domingo passado, o bispo de Coimbra, Dom Virgílio Antunes, encerrou um ano dedicado à fé com palavras que só agora tive oportunidade de ler. Disse ele que os cristãos devem ajudar “os homens e mulheres nossos irmãos a acolher e aceitar a sua própria cruz como caminho de redenção” e que “[u]m dos grandes obstáculos à fé está na dificuldade que todos temos de aceitar a nossa cruz, por nos parecer uma negação da nossa grandeza humana.” Aprendi com teólogos da libertação como o dominicano Gustavo Gutiérrez que uma fé cristã que não envolva uma prática de transformação do mundo é idealista. Fecha os olhos à realidade em que nos situamos. Contribui para a manutenção e fortalecimento de poderes opressores como os que mataram Jesus. É precisamente por isso que o sofrimento na cruz nos interpela e nos leva a afirmarmos, nas palavras e nos actos, que este sofrimento não é aceitável nem desejável, que é necessário trilhar um caminho diferente — que não surgirá sem a nossa abnegação, claro está. Num tempo em que tantas pessoas sofrem em Portugal, em situação social se agrava, Dom Virgílio decidiu de alguma maneira ignorar o pranto que se ouve nas ruas e que se instalou no dia-a-dia por entre a dor e a vergonha. Não há nada de errado no ensinamento, porque toda a gente enfrenta dificuldades e tribulações, de uma forma ou de outra, e Cristo está connosco e nós com Cristo quando lidamos com elas. Seja como for, o ensinamento tem de ser adaptado ao tempo no qual é articulado para dar poder dar fruto. Sem esse cuidado, pode ser entendido como a afirmação da passividade como virtude ou como um elogio do masoquismo.

Cabeça Alta

20.11.2013

A partir de Mal 3,19-20a, 2Tes 3,7-12, e Lc 21,5-19:

“Grandes coisas estão por vir”, lia esta semana no mural de um companheiro, frade dominicano, numa rede social informática. Uma inscrição destas circula pelo mundo porque nos corre no sangue e nos palpita no coração. De fora fica a dimensão passiva da espera. Quando falamos no que há-de vir estamos necessariamente a falar em algo que projectamos no futuro e que já antevemos no presente. Daí que, antecipando o crucificado, Malaquias fale do “sol de justiça” como uma irradiação que ele tem esperança que nasça na história da humanidade para se tornar medida da justiça. A questão que Paulo nos coloca é esta: qual é o contributo daquelas e daqueles que o podem dar para que essa possibilidade real se concretize? “Erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”, diz o cântico para esta celebração que é simultaneamente a expressão de uma aspiração e um projecto de vida, a afirmação da dignidade humana e o potencial libertador que ela abre. Somos convidados a ser participantes perseverantes nesta mudança, com uma força que nos permite enfrentar a denúncia e o desprezo de quem não a quer.

A Liberdade Profunda

19.11.2013

Via fr. José Carlos, OP:

Dois sentidos da liberdade, duas maneiras de ser um homem livre, em extensão e em profundidade. Ser livre de tudo amar. Ser livre de ir tão longe quanto se possa e que se queira numa certa estrada, num certo amor ou numa ideia. E estes dois sentidos frequentemente são contrários, quem se estende até ao infinito permanece superficial.

MARIE-ALAIN COUTURIER, OP

Good Things

15.11.2013

The bride too in the Song of Songs says, “I have found him whom my soul loves” (3:4) and again, “All good things came to me along with her”. (Ws 7:11). This, after all, is the hidden heavenly treasure, none other than the pearl of great price, which must be sought with resolution, esteeming it in humble faithfulness, eager diligence, and calm silence before all things, and preferring it even above physical comfort, or honour and renown. For what good does it do a religious if he gains the whole world but suffers the loss of his soul?

ST. ALBERTUS MAGNUS, OP, On Cleaving to God

XIII Jornadas Nacionais da Família Dominicana

07.11.2013

Descobertas Intermináveis

31.10.2013

O fr. Filipe escreveu-me, escreveu-nos, para lembrar ontem, com Agostinho, “que a construção fez-se com trabalho e a dedicação realiza-se com alegria”. Faço parte desta história já com oito anos e esta história faz parte de mim. Foi no Convento de São Domingos, em Lisboa, que eu comecei realmente a descobrir o que é uma comunidade e, portanto, o que é ser cristão e, depois, o que é ser dominicano — e essas são descobertas intermináveis.

Deus e Nada

22.10.2013

Surrexit autem saulus de terra apertisque oculis nihil videbat. Estas palavras que pronunciei em latim são escritas por São Lucas nos Actos a respeito de São Paulo e significam: “Paulo levantou-se da terra e, de olhos abertos, viu o nada.” Parece-me que esta pequena palavra tem quatro significados. Um deles é: quando ele se levantou da terra, de olhos abertos, viu o nada e esse nada era Deus, pois, quando ele viu Deus, chamou-lhe um Nada. O segundo significado: quando se levantou, nada viu senão Deus. O terceiro: em todas as coisas ele não viu nada senão Deus. O quarto: quando viu Deus, viu todas as coisas como um nada.

MESTRE ECKHART, OP, “Sermão 71”
(trad. Sérgio Dias Branco, OP, a partir da trad. para inglês de Bernard McGinn)

On a Dark Night

10.10.2013

Oh, night that guided me,
Oh, night more lovely than the dawn,
Oh, night that joined Beloved with lover,
Lover transformed in the Beloved!

ST. JOHN OF THE CROSS, OCD, Dark Night of the Soul

Histórias Cosidas

07.10.2013

A partir de Hab 1,2-3/2,2-4, 2Tim 1,6-8/13-14, e Lc 17,5-10:

Nas leituras de hoje, Habacuc começa por olhar para cima, implorando ajuda divina, mas acaba por gravar a sua visão de justiça em tábuas para que possa ser lida e partilhada. A vida de um justo como ele alimenta-se da sua fidelidade a um horizonte ao qual a humanidade aspira. Este episódio da vida espiritual de Habacuc lembra o que Agostinho diz no “Sermão 50”: para enfrentarmos os outros temos de nos enfrentar a nós mesmos. É também nesse sentido que as palavras de Jesus vão. Perante o pedido de fazer aumentar a fé naqueles que o acompanham, ele aponta pelo contrário para uma fé pequena mas fértil, grandiosa na sua pequenez, como um grão de mostarda. A linguagem dele é intrincada e indirecta, definindo a fé não como uma doutrina, mas como uma prática. Uma prática quotidiana e convicta do serviço fraterno que conduz à coincidência entre o que devemos fazer, o que queremos fazer, e o que podemos fazer. Para Jesus, tal como para o profeta Habacuc, é assim que a nossa história pessoal se vai cosendo a uma história maior, a de um povo.

Trabalho Digno

07.10.2013

A Liga Operária Católica e outras organizações do Movimento de Trabalhadores Cristãos da Europa promovem hoje uma jornada pelo trabalho digno. É um gesto de relevo numa altura em que há um ataque cerrado aos direitos conquistados e à devida dignidade dos trabalhadores europeus.

Em Julho deste ano teve lugar a Assembleia Mundial do Movimento de Trabalhadores Cristãos na qual estes grupos europeus estiveram presentes. A declaração final deste encontro ligou o actual aumento da exploração e do empobrecimento dos trabalhadores a uma desadequada “protecção social” que torna as pessoas “escravas de um sistema capitalista que é imoral”, referindo a necessidade de uma outra política centrada “na defesa da justiça, do bem comum e dando o poder aos povos” e na “distribuição justa da riqueza económica, social e cultural”.

Trata-se, portanto, de lutar pela libertação dos trabalhadores daquilo que os acorrenta à indignidade. Mais informações aqui.

Entre Ti e Mim

04.10.2013

Entre ti e mim a igualdade,
mesmo obscuro, mesmo ausente,
entre ti e mim o espaço
do teu corpo imenso, irmão,
azul e áureo,
num infinito odor ardente, saboroso,
transviando-se, morrendo e renascendo,
mas sempre igual, igual em sua presença de olvido,
resolvido desde sempre e para sempre
e sempre inicial.

Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
Que alegria ser a onda, a sua onda,
profunda, calada, verdadeira!
Que alegria ser a permanência leve
deste unânime deus ausente!

ANTÓNIO RAMOS ROSA, “A Igualdade do Deus Ausente”

Liberdade e Libertação

02.10.2013

Segundo uma antropologia da liberdade [...] a sociedade tem a missão de criar, para todos, condições de liberdade, isto é, de constituir um mundo em que todos se sintam sujeitos e não objectos, enquanto partícipes da iniciativa política, económica, cultural, numa palavra, da iniciativa histórica, um mundo, pois, donde sejam banidas todas as formas de dependência alienantes, nas relações entre os indivíduos, as classes sociais, as raças, os sexos, os povos, os continentes.

[...] A abertura à liberdade dos outros estende-se necessariamente à liberdade de todos: ninguém se poderá considerar verdadeiramente livre enquanto houver um só homem oprimido.

A experiência da liberdade é, pois, acompanhada dum potencial de universalidade que ela projecta imediatamente para o mundo. Não posso escolher a minha liberdade sem escolher a libertação do mundo. [...]

Assim, o ideal de libertação pessoal é indissociável do da libertação do mundo; o projecto pessoal é indissociável do projecto histórico.

GIULIO GIRARDI, Cristianismo, Libertação Humana e Luta de Classes

TEAR: Reunião Aberta

20.09.2013

Filhos Pródigos

16.09.2013

A partir de Sab 9,13-19, Flm 9b-10/12-17, e Lc 14,25-33:

As leituras deste domingo alertam-nos para o perigo da idolatria, fonte de convencimento e receio. O idólatra é aquele que venera símbolos desligados da vida — no fundo, fechando-se para se venerar a si próprio. O ídolo, um bezerro de ouro ou o dinheiro acumulado, é sempre um espelho da condição espiritual de quem o venera. Daí que ganhar consciência sobre essa situação leve a atribuir a Deus uma atitude indignada e irada. Jesus vem mostrar algo diferente: não um Deus em forma de coisa, mas uma experiência de Deus na qual podemos participar em comunidade. É uma experiência que nos fortalece em vez nos enfraquecer. A misericórdia é precisamente a compaixão que sentimos pelo conflito que vamos vivendo, pelo facto de às vezes não sermos o que podemos ser e de descobrimos que não somos os únicos com esse sentimento. Por essa razão, procuramos interiorizar o perdão. Se lamentamos o que fizemos e o que não conseguimos fazer é para deixarmos de pensar no passado e abrirmos um caminho diferente para o futuro. Renovamo-nos, precisamente, porque não desistimos de nós, dos outros, e do mundo. Somos todos filhos pródigos.

A Partir de São Domingos

08.08.2013

Ó luz da Igreja, doutor da verdade, rosa de paciência, marfim de pureza, de graça alcançaste a água da sabedoria: pregador da graça, une-nos aos santos.

Ofício de São Domingos

A Relação

29.07.2013

O Dia e a Noite do Vinho

29.07.2013

Vinho cor do dia,
Vinho cor da noite.

O vinho faz mover a primavera,
E cresce como uma planta da alegria.

Vinho da vida, tu és também
Amizade entre os seres,
Transparência, abundância de flores.

Que o bebam, que o recordem
Em cada gota dourada
Ou taça de topázio,
Que o outono trabalhou até
Encher as vasilhas de vinho,
E que o homem obreiro aprenda
A recordar a terra e os seus deveres,
A propagar o cântico fruto!

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Glosa sobre o Vinho”

A Horizontalidade da Cruz

28.07.2013

Vertical sou contra Deus
Horizontal a favor.
Nesta cruz me crucifico
Vertical com desespero
Horizontal com amor.

NATÁLIA CORREIA, “Crucificação”

Bento Domingues, OP, “Paciência com Deus (3)”

27.07.2013

S. João da Cruz, o místico da noite escura da alma, deixou-nos um desenho da Crucificação, visto de cima, a perspectiva do Pai que inspirou a pintura de S. Dali. Visto de cima, esse momento tenebroso assume um aspecto bastante diferente: a derrota é vitória… é a morte da morte. O ser humano não cai numa escuridão infindável, regressa à luz. A fé cumpriu a sua missão de peregrina, para se dissolver no reino do amor.

Nós ainda estamos a caminho. A fé cristã — ao contrário da religiosidade natural, fácil e despreocupada — é sempre uma fé em processo de ressurreição. Encontra-se em fases muito diversas, ao longo das nossas vidas. O comentário irónico de que a fé é uma muleta para fracos e coxos, dispensável pelos fortes, pode ser, apenas, um expediente de conversa. Prefiro a metáfora de cajado do peregrino, que todos somos.

Bento Domingues, OP, “Paciência com Deus (2)”

22.07.2013

O próprio autor manifesta as preocupações que o levaram a escrever. Conta que, certo dia, viu na parede da estação do metro, em Praga, a inscrição: “Jesus é a resposta”, provavelmente escrita por alguém no regresso de alguma fogosa reunião evangélica. Outra pessoa acrescentara, com toda a propriedade: ”Mas qual era a pergunta?”

Isto fez-lhe lembrar o comentário do filósofo Voegelin: para os cristãos o que mais conta não é terem as respostas certas, mas terem-se esquecido de qual era a pergunta, para a qual eles próprios eram a resposta. Há que confrontar perguntas e respostas para devolver um verdadeiro sentido às nossas afirmações. A verdade acontece ao longo do diálogo. Temos de passar de respostas aparentemente definitivas para infinitas interrogações. Ter fé significa passar para uma caminhada infindável, entrar para o coração do inesgotável mistério, poço sem fundo.

Da Hospedagem ao Encontro

21.07.2013

A partir de Gen 18,1-10a, Col 1,24-28, e Lc 10,38-42:

Neste domingo somos convidados a meditar sobre a dimensão da hospedagem na nossa vida espiritual. Tal como para Abraão, é na abertura interessada, confiante, e pacífica que acolhe quem passa e precisa de ser acolhido que a nossa espiritualidade se engrandece e os sinais que emitimos ao mundo se elevam. Ao abrir espaço para que os outros se alojem onde vivemos, construímos uma nova morada com a fraternidade e a camaradagem. Cristo permanece neste espaço que nos une, anulando a distância que nos separa, tornando-nos simultaneamente conscientes da interdependência e da singularidade pessoal, isto é, das relações mútuas e das vontades íntimas que nos vão definindo. Quando Jesus visita as duas irmãs, Marta e Maria, a existência atarefada da primeira faz com que ela perca de vista o essencial. Marta age como uma criada, não como uma anfitriã, presa a obrigações que se acumulam e a apagam como ser humano e como mulher. Abre a porta a Jesus sem o chegar a acolher e ele lembra-a que o essencial é o encontro. Só o encontro, na igualdade e disponibilidade que implica, é fecundo, porque não nos deixa iguais ao que éramos antes nem nos permite saber quão diferentes seremos depois.

Tudo o que Tem Forma e Gosto de Pão

20.07.2013

Pão como tu és simples e profundo
Conjunção de gérmen e de fogo
Tu és a ação do homem
Milagre repetido, vontade da vida.

Semearemos de trigo
A terra e os planetas,
O pão de cada boca, de cada homem.

O pão, o pão para todos os povos,
Tudo o que tem forma e gosto de pão:
A terra, a beleza e o amor.

Tudo nasceu para ser partilhado,
Para ser dado,
Para se multiplicar...

A vida terá também a forma de pão,
Será simples e profunda,
Inumerável e pura.

Todos os seres terão direito
À terra e à vida,
E assim será o pão de amanhã,
O pão de cada boca, sagrado, consagrado,
Porque será o produto da mais longa
E da mais dura luta humana.

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Glosa sobre o Pão”

Promessa Temporária OP

20.07.2013

Bento Domingues, OP, “Paciência com Deus (1)”

08.07.2013

Ninguém pode, no entanto, ser proibido de imaginar o mundo divino segundo os recursos das suas tradições culturais e religiosas, com a liberdade e ousadia criadoras dos artistas de cada época. A beleza do livro de Rebecca Hind resulta da recolha esmerada de expressões artísticas na diversidade do mundo religioso. Nesta imensa diversidade, nenhuma obra pode pretender ser a expressão adequada de Deus e muito menos a sua fotografia. A verdadeira arte não fecha o mundo. Sugere universos que não cabem em conceitos e representações definidas. Não fixa, abre a imaginação. Fruto de uma grande viagem, este livro ajuda a visitar mundos que nunca podem ser circunscritos. Apenas modestamente sugeridos.

Entre todas as artes, aquela que menos distrai do infinito divino, por absoluta ausência de referente, é a grande música. A de J. S. Bach nasceu para nos dar o sentimento de Deus e dos mistérios cristãos. K. Barth prometeu que, ao chegar ao céu, iria pedir aos anjos para tocarem Mozart. Eduardo Lourenço, como sempre, sabe escrever destas coisas como ninguém.

Recitamos Aquilo que Desconhecemos

03.07.2013

Nesses teatros de água, ouvimos as ondas em voz alta
assistimos às tempestades de luz acometendo a face das coisas
e recitamos aquilo que com as mãos inquietas desconhecemos.

MANUEL GUSMÃO, “A Velocidade da Luz”

Bento Domingues, OP, “Pobreza Escandalosa e Pobreza Virtuosa”

01.07.2013

O profeta é um clarividente, um lúcido que procura que todos vivam com lucidez. O seu propósito não é ter poder, mas contribuir para que o povo e os governantes não se enganem, não enganem, nem se deixem enganar. Descubram onde está a verdadeira vida. Para o autêntico profeta, a paz é filha do direito, da justiça, da verdade e da sabedoria.

A figura do Messias, pelo contrário, é a de quem resolve, de forma “teocrática”, milagrosa, os problemas económicos, sociais e políticos. O Messias é um caudilho que manipula a opinião pública para conseguir e manter o poder. Os textos evangélicos encaram as tentações messiânicas como diabólicas: não deixam Deus ser Deus, nem os seres humanos responsabilizarem-se pela sua história. Deus é um tapa buracos e os seres humanos paus mandados de forças obscuras.

Jesus só foi reconhecido Cristo (Messias),— aliás um Messias crucificado —, porque venceu a tentação caudilhista. Defendeu a causa dos pobres, denunciou a idolatria do dinheiro e os ricos avarentos, provocou a conversão dos “zaqueus”, dispondo-os a restituir os frutos da corrupção, sem nunca se tornar sectário.

A Libertação para a Liberdade

01.07.2013

A partir de 1Reis 19,16b/19-21, Gal 5,1/13-18, e Lc 9,51-62:

As leituras deste domingo põem-nos a pensar em Deus através da experiência da liberdade e da sua procura. Na raiz da nossa liberdade está a liberdade que nos precede e de que somos rebentos. No fim da nossa liberdade está a liberdade que procede de nós e de que somos autores. Eliseu ergue-se e junta-se a Elias. Há um espírito que o anima, atravessa, e é transmitido por causa desse gesto liberto e afirmativo. A partir da sugestão do salmo, podemos dizer que Deus é a sua herança. É de igual modo a nossa, quando nos deixamos guiar pelo sopro da libertação. Colocamo-nos fora de nós sem que isso nos apague. Rejeitamos o que nos fecha em nós e participamos na vida do mundo e na sua transformação, contribuindo para a justiça e a paz. “Foi para a verdadeira liberdade que Cristo nos libertou”, declara Paulo. Os discípulos de Jesus acompanham-no sem saber para onde vão e sem terem onde reclinar a cabeça, apenas com um projecto de anúncio que os orienta e fortalece. O reino que eles anunciam é aquele que constroem.

TEAR: Humildade (João Maria André)

25.06.2013

Bento Domingues, OP, “O Pacto das Catacumbas”

24.06.2013

No documento Pobreza da Igreja, Medillin (1968), os bispos latino-americanos assumem o Pacto das Catacumbas. Constatam as queixas dos pobres: “a hierarquia, o clero e os religiosos são ricos e aliados dos ricos”. Embora se confunda, com frequência, a aparência com a realidade, reconhecem que vários factores contribuíram para criar a imagem de uma Igreja institucional rica: os grandes edifícios, as casas de párocos e religiosos, quando são superiores às do bairro em que vivem; carros próprios, por vezes luxuosos; a maneira de se vestir, herdada de épocas passadas.

“No contexto de pobreza e até miséria em que vive a maioria do povo latino-americano, os bispos, sacerdotes e religiosos têm o necessário para a vida e também uma certa segurança, enquanto os pobres carecem do indispensável e se debatem no meio de angústia e incerteza”.

Testemunho na Peregrinação da Diocese de Coimbra

22.06.2013

Deixo o registo do meu testemunho na recente Peregrinação da Diocese de Coimbra a Fátima:

A ​Mudança​​ no Mundo do Trabalho

20.06.2013

As informações detalhadas e os contributos das entidades participantes podem ser consultadas aqui.

Bento Domingues, OP, “Um Deus Irremediavelmente Masculino?”

17.06.2013

Na tradição da teologia mística do famoso Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V-VI), dizer Deus é referir-se à profundidade infinita e inapreensível do mistério. Nenhum nome lhe pode ser verdadeiramente adequado. Ao ser evocado na linguagem simbólica, sabe-se que esta vem dos abismos do silêncio e carrega, em cada afirmação, uma negação para vencer a tentação da idolatria. Quando alguém se fixa em representações de um deus unissexo ou pluri-sexual não se salta para fora dessa prisão. Só é possível chamar a Deus Pai e Mãe ou referir-se ao rosto materno de Deus, quando se vive na raiz da linguagem metafórica. Esta remete para a Realidade que não cabe em nenhum conceito nem se esgota em nenhuma experiência. O cristianismo não pode esquecer as suas raízes: o amor crucificado que não renuncia à pátria da alegria. Às expressões de “espiritualidades apoetadas”, de meladas facilidades, aconselharia uma cura na poesia de Herberto Helder, de Paul Celan, de Angelus Silesius ou na mística do Mestre Eckhart.

Bento Domingues, OP, “O Sagrado Coração de Jesus Mal Pintado”

10.06.2013

Porque será que algumas das expressões mais belas do Antigo e do Novo Testamento tenham sido transformadas em insuportáveis figuras que apresentam entre as mãos, sobre o peito, a extracção de um coração ensanguentado, num realismo que é a própria negação do caminho simbólico, caminho da transcendência? Que terá isso a ver com a promessa bíblica evocada no baptismo, “dar-vos–ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo. Arrancarei do vosso peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne“? Será a troca de uma pedra da calçada por um naco de carne humana?

Como encontrar nas ditas imagens do “sagrado coração de Jesus” a beleza deste apelo?

Erguer a Voz Sem Medo

10.06.2013

O bispo Januário Torgal Ferreira relembrou ontem o antigo bispo do Porto, António Ferreira Gomes, na Celebração Eucarística que fechou o XV Congresso da Liga Operária Católica. Foi ele que ergueu a voz para dizer a Salazar que “os frutos do trabalho têm de ser repartidos com justiça e equidade a todo e qualquer trabalhador”. Coube-lhe o exílio, mas as suas palavras corajosas não podiam ser apagadas. Januário Torgal reafirmou que os cristãos devem erguer a voz contra um sistema socioeconómico que cria injustiça e miséria. Apelou ainda a que vençam o medo (ecoando Arménio Carlos, secretário-geral da CGTP-IN, que tinha falado momentos antes). Assim seja.

Subtrair Deus de Deus

04.06.2013

No sábado passado, o Rui Damasceno leu o poema “O Actor” de Herberto Helder. Ouvimos estas palavras durante uma tertúlia sobre teatro, junto ao Mondego, promovida pela Câmara Municipal de Coimbra no contexto da Feira do Livro e de Artesanato da cidade:

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.

Bento Domingues, OP, “O Segredo da Alegria de João XXIII (2)”

03.06.2013

É próprio do moralismo destilar maldições sobre as mais autênticas alegrias humanas. Instalou-se, há muitos séculos, em certas correntes do cristianismo e reaparece, periodicamente, como se fosse a sua versão mais genuína pelo seu “desprezo do mundo”. É, na verdade, uma importação estranha à poética pregação de Cristo que respira, em cada gesto e em cada parábola, o gosto da plenitude da vida (Jo 20,30-31).

A evasão gnóstica foi denunciada por S. João ao falar de Cristo como Aquele “que ouvimos, vimos com os nossos olhos e nossas mãos apalparam da Palavra da vida [...] E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa” (1Jo 1,1-4). A pregação e a intervenção da Igreja só valem na medida em que forem Evangelho, isto é, revelação de que, da parte de Deus, todos somos amados, mas com um encargo: “amai-vos uns aos outros” (Jo 15,12-17).

Dir-se-á que qualquer um, em dia sim, poderia escrever algo parecido. Esqueci, nas transcrições referidas, uma frase que perturba essa veleidade: “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”. Não fica por aqui: “sois meus amigos se esta for a vossa prática”. Se os bons sentimentos não chegam para a boa literatura, também não são as boas intenções que nos salvam.

A Unidade por Cumprir

03.06.2013

A partir de Gen 14,18-20, 1Cor 11,23-26, e Lc 9,11b-17:

Neste domingo, vamos ouvir como o pão e o vinho trazidos por Melquisedec enaltecem o combate que Abraão fez a saqueadores e raptores. Melquisedec é sacerdote como Cristo, ou seja, é alguém que torna sagrado. Como relembrou o Concílio Vaticano II também os leigos são sacerdotes neste sentido. Tornamos sagrado quando pomos à vista como o quotidiano se abre ao divino e como o homem se eleva realizando o seu potencial. Tal movimento é inseparável da unidade que experimentamos na comunhão eucarística do mesmo pão, do mesmo vinho, do mesmo espírito — uma unidade que transportamos connosco e concretizamos de muitas formas. É o que Jesus faz quando reparte os alimentos disponíveis por uma multidão, saciando-a. Olhando à nossa volta, constatamos que os recursos não são usados assim. Nos primórdios do cristianismo, a refeição ritual dos cristãos era chamada festa do amor. Continua a sê-lo. Mas não nos esqueçamos que Abraão e Jesus batalharam e entregaram o corpo e a vida para que o amor se cumprisse. Talvez as crianças entendam melhor isto. Ontem foi o dia dedicado a elas, que esta comunidade estende para esta celebração. Elas são a promessa de um outro mundo. Aos olhos das crianças tudo é possível: a realidade está em aberto, palpita de vida, sendo a cada momento descoberta, imaginada, criada. Nenhuma criança acreditaria num amor que fechasse os olhos ao que causa pobreza, desigualdade, e injustiça.

Bento Domingues, OP, “O Segredo da Alegria de João XXIII (1)”

29.05.2013

Creio que Jesus não veio resolver os problemas das áreas da competência humana, nem substituir a nossa responsabilidade histórica. Interessa-Lhe apenas fazer de nós criaturas novas, mediante a graça da conversão permanente. Compete-nos resolver os nossos problemas, por nossa conta e risco, através das ciências, das técnicas, das artes e das sabedorias que formos inventando ou descobrindo.

É certo que não deixou nada escrito, não encarregou ninguém de escrever e os textos cristãos não impõem uma interpretação única. Remetem para a participação na realidade viva de Cristo.

Os cristãos e as suas comunidades, como todos os grupos humanos, nascem e desenvolvem-se numa história marcada por tradições, mas sem estarem condenados a repeti-las. O Espírito de Pentecostes, que celebrámos no Domingo passado, é fonte de inovação segundo a pluralidade de carismas pessoais e de grupo.

Vivemos

27.05.2013

Vivemos demonicamente toda a nossa inocência.

HERBERTO HELDER, “Servidões”

Lutar com os Nossos Irmãos pela Sua Dignidade

25.05.2013

Hoje de manhã, numa reunião da Liga Operária Católica em Coimbra dissemos que "iremos lutar com os nossos irmãos pela dignidade que se lhes retira". Assim continuará a ser.

Foi a Verdade

22.05.2013

Quando a razão natural, o testemunho da Lei e dos profetas, o ensinamento dos Apóstolos e dos seus sucessores, conduziram um homem, como que pela mão, até ao acto de fé, pode esse homem dizer, então, que não foi nenhum dos motivos precedentes, que não foi a razão natural, que não foi o ensinamento dos homens que o fizeram crer, mas somente a Verdade primeira por si mesma.

S. TOMÁS DE AQUINO, Comentário sobre São João

Bento Domingues, OP, “Celebrar a Subversão”

20.05.2013

O ritualismo, no espaço cristão, esquece a prática histórica de Jesus Cristo. Segundo as narrativas do Novo Testamento, Ele, como bom judeu, frequentava, ao Sábado, a Sinagoga. Aproveitava sempre esses momentos especiais para subverter a desumanidade em que tinham caído as instituições e os tabus do sagrado, do inviolável. Para os adeptos da estrita observância, essas atitudes eram provocações tão graves que evidenciavam que Ele não podia ser um homem de Deus. Os prodígios que realizava manifestavam, claramente, que era um diabo disfarçado ao serviço de Beelzebu, o príncipe dos demónios.

Para o Nazareno, o dia consagrado a Deus deve ser o que celebra o acontecer actual da libertação e que fora transformado numa nova prisão. A tentação católica é sempre a de esquecer que o Domingo é para celebrar, de forma eficaz, a subversão de tudo o que mata a vida e a alegria. Liberta, em nós, o Espírito da ressurreição, fonte de insurreição.

Pentecostes

19.05.2013

Ó fogo reconfortante do Espírito,
Vida, dentro da própria Vida de toda a Criação.
Santo és tu em dar vida a Tudo.

S. HILDEGARDA DE BINGEN, OSB, “Ignis Spiritus Paracliti”

TEAR: Solidariedade (Tiago Mota Saraiva e José António Bandeirinha)

16.05.2013

Bento Domingues, OP, “Ainda Há Muito a Fazer”

13.05.2013

Poderíamos, desta maneira, ser pioneiros na resolução de problemas postos a nível mundial. Se os sete mil milhões de seres humanos na terra tivessem o nível de vida dos EUA seriam necessários, pelo menos, mais seis planetas, para satisfazer as suas necessidades. No período em que a população cresceu 100%, a área cultivável só aumentou 10%. Assim não dá.

A solução do referido pragmático não é um atentado à vida humana pois, agora por agora, a morte é certa. O método proposto apressa o céu aos crentes. Os não crentes na vida depois da morte são poupados às doenças, aos hospitais e aos lares que tornam a vida um inferno laico. Os que acreditam na reencarnação só começam mais depressa a nova experiência de vida. Quem insiste em convicções humanistas e religiosas, sobretudo as que destacam o valor absoluto da pessoa humana, criada à imagem de Deus, não se podem queixar, pois a divindade só pode ver com bons olhos uma solução que evita sofrimentos desnecessários.

Esta pragmática tão despachada é uma divindade despótica, própria de uma era que não acredita em milagres de bondade e solidariedade mas, sobretudo, por já ter o futuro todo previsto e desenhado. Depois de ter transformado o ser humano numa coisa, sem sentimentos, sem liberdade e sem interrogações, é fácil determinar o que convém e não convém a essa estranha criatura.

Bento Domingues, OP, “A Ditadura do Medo”

06.05.2013

O medo, fruto da apreensão de um mal como ameaça eminente e à qual não se vê como resistir, pode ter várias causas e muitos rostos. Enquanto tal, é paralisante. O próprio Jesus, ao sentir-se ameaçado de morte pelo Sinédrio, deixou de andar em público entre os judeus (Jo 11,54).

Só quando venceu o medo dentro dele próprio, enfrentou o perigo, embora, em plena oração no Jardim das Oliveiras, tenha sido assaltado por extrema angústia. As mulheres foram as únicas que, depois do desastre, venceram o medo. Os discípulos viveram trancados, enquanto o Espírito Santo não os modificou até à raiz e abriu o seu judaísmo ao mundo pagão, ao mundo dos gentios. Isto não aconteceu sem um grande debate no Concílio de Jerusalém. É o tema da Missa de hoje.

Os Evangelhos, ao colocarem na boca de Jesus um repetido “não temais”, dizem que não era a audácia que os animava.

O medo paralisa, o amor é criativo.

Bento Domingues, OP, “Um País Não é um Convento”

29.04.2013

Com a ideia fixa de que não havia alternativa, Portugal contraiu uma doença degenerativa, a “espiral da recessão”. O próprio presidente da Comissão Europeia perdeu a confiança nos “conselheiros tecnocratas” que, “nos dizem qual o melhor modelo, mas que quando perguntamos como o implementar, dizem que isso já não é com eles. Isto não pode acontecer a nível europeu”.

A política de austeridade não atingiu apenas os seus limites. Lançou no desemprego milhões de pessoas. Não se devia poder brincar com o destino colectivo dos povos. A reforma da política de um país ou da UE não é a reforma espiritual de um convento.

Tomar a Palavra

27.04.2013

“O caldo vai-se entornar...”, disse ontem o fr. José Nunes na celebração eucarística da família dominicana em Guimarães, durante um passeio que reuniu frades, irmãs, leigas e leigos como eu. Falava do futuro. Disse-o depois de uma mulher, a ir. Graça Maria, ter dito uma bela e fervorosa pregação, em vez de um dos padres presentes. Foi uma poderosa evocação da força de Catarina de Sena, uma das mulheres mais marcantes na história da Igreja. Uma mulher que não se manteve calada, que teve a coragem de falar para ser ouvida no séc. XIV, e que nos deixou um legado vivo de palavras ardentes que ainda hoje incendeiam. Adiante.

Guardadores e Guardados

22.04.2013

Ainda a pensar na homilia inter-religiosa do pe. Paulo, que relacionou a iconografia cristã do bom pastor com as imagens de Orfeu e as representações visuais de Krishna, a partir de Act 13,14/43-52, Ap 7,9/14b-17, e Jo 10,27-30:

Neste quarto domingo de Páscoa, podemos perguntar o que nos dizem as imagens do pastor e da ovelha. Estamos longe da cultura de pastorícia que lhes deu origem — um meio de subsistência tornado pensamento da existência. Não queremos ser ovelhas. Desconfiamos que os pastores são arrogantes. Mas ouçamos Alberto Caeiro: “Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse. / Minha alma é como um pastor, / Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar.” A universalidade da primeira leitura leva-nos a considerar todos os seres humanos como guardadores e guardados, conhecendo e cuidando, sendo conhecidos e sendo cuidados. O princípio do amor está inscrito no nosso coração. Por isso, Jesus diz que a sua voz é escutada. Não é uma voz estranha que vem de cima. É uma voz íntima que vem do horizonte. A vida espiritual é uma procura de fazer coincidir o que somos e o que podemos ser, o que queremos fazer e o que devemos fazer, vencendo a nossa resistência em sermos completamente humanos.

Bento Domingues, OP, “Dois Ouvidos e uma Boca”

22.04.2013

Sob o ponto de vista bíblico, não era uma traição. Frei Francolino Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Pontifícia Bíblica, nos seus estudos sobre o Antigo Testamento (AT), chegou à conclusão que, no seu conjunto, é o resultado da fusão de duas religiões de Iavé muito diferentes. Começaram até por ser concorrentes e acabaram por se fundir, dando lugar a uma síntese. De facto, a religião que estamos mais habituados a ler no AT funda-se na história das relações entre Iavé e Israel, mas essa é a mais recente. A mais antiga funda-se na obra criadora de Iavé e, por isso, tem o universo como horizonte e nada tem de nacionalista. É radicalmente universalista, dirige-se a todo e qualquer ser humano que a descobre e manifesta na observação do cosmos, da natureza e da cultura. Pode ser um bom caminho para um diálogo inter-religioso.

Anselmo Borges, “Óscar Lopes e o Transcendente”

22.04.2013

Para Óscar Lopes, que deixou de ser cristão por causa da afirmação do inferno, a virtude da fé bem como a da esperança são “inseparáveis do simples facto de se ser vivo e consciente”. Citou o amigo Mário Sacramento: “Sim, é com Fé que todos somos homens, quando o somos.”

Para ler aqui.

O Operário em Construção

18.04.2013

Bento Domingues, OP, “O Ser Humano Não Tem Cura”

15.04.2013

A Bíblia tem duas narrativas da criação. São narrativas poéticas que não pretendem explicar o mundo, mas sugerir, de forma muito bela, o seu sentido. A ciência, pelo contrário, fala de processos naturais. Apresenta a evolução como fruto de adaptações e mutações, não sendo fruto do azar, mas da selecção natural.

Só quem não consegue distinguir poesia e ciência pode ver contradições onde, de facto, não existem.

Bento Domingues, OP, “A Ressurreição Continua”

08.04.2013

Goste-se ou não, as celebrações da Páscoa obrigam os cristãos a confrontarem-se com um fenómeno insólito, que sempre procuraram disfarçar. As narrativas da Ressurreição foram todas escritas por homens, atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João. Era de supor que o maior destaque fosse dado aos apóstolos, mas não é. São as mulheres que recebem o encargo de os evangelizar, de lhes anunciar o que há de mais importante no Evangelho, a ressurreição.

Este é o facto. Não basta dizer que Cristo assim quis e pronto. Seria o elogio da arbitrariedade. Ele devia ter as suas razões para agir deste modo. Quais poderiam ser?

Foi Jesus que escolheu e chamou os seus discípulos. Acabou por descobrir que eles não O entendiam, nem estavam interessados no seu projecto. No Evangelho de S. Marcos, a grande discussão que os animava, no âmbito da tomada do poder, centrava-se na distribuição de lugares. (Mc 4,34). Dois deles encheram-se de coragem e colocaram ao Mestre as suas exigências: quando triunfares, como rei messiânico, nós queremos os dois primeiros lugares. Esta pressa produziu uma grande indignação nos outros. Depois de uma reunião, receberam todos a mesma resposta: aquele que quiser ser o primeiro, de entre vós, seja o servo de todos (Mc 10,35-45).

Alimentaram sempre a esperança de que Jesus acabaria por perceber que esse rumo só o podia levar ao desastre. Pedro tentou, até à última, mostrar-lhe que tinha mesmo de mudar. Os apóstolos, quando viram o Mestre derrotado na cruz, aperceberam-se de que tinham andado enganados. Acabara-se o tempo das ilusões e cada um voltou à sua vida. Já tinham perdido muito tempo.

Bento Domingues, OP, “Semana das Alianças Malditas”

25.03.2013

É importante desfazer um equívoco grave, para não se cair numa interpretação que nega o próprio sentido das narrativas e das cristologias do Novo Testamento. Supõe-se que esses textos foram escritos para afirmar privilégios e fundar um povo, uma Igreja de privilegiados: Cristo é único e é nosso; se o quiserem encontrar têm de passar por nós!

O que é particular à pessoa de Jesus, a sua absoluta característica, não tem nada a ver com esse equívoco: Jesus, na sua prática histórica, remete para um Deus que não é propriedade privada nem Dele nem de ninguém. É o Deus do livre amor por todos os seres humanos, sem restrição. O Deus de Jesus também não pode ser privatizado nem sequer pelos cristãos. Por outro lado, Jesus, na sua prática histórica, surge polarizado por todos os seres humanos, sejam ou não povo de Israel. É a partir da periferia que caminha para o centro. Tudo e em tudo, dentro e fora das religiões, só tem sentido se fôr para o bem de toda a humanidade.

Quaresma VI

24.03.2013

Deus mostra-se tal como a Sua Verdade disse: Quem me ama estará comigo e eu com eles, e hei-de mostrar-me a eles e faremos juntos uma morada. Assim é entre amigos muito queridos. O seu afecto amoroso faz deles dois corpos com uma alma, porque o amor transforma-nos no que amamos. E se estas almas se fazem numa alma com Deus, nada poderá ser escondido delas. É por isso que a Verdade de Deus disse, Virei e faremos uma morada juntos.

S. CATARINA DE SENA, OP, O Diálogo

Não Ouvir

23.03.2013

Pai Poemen disse, “o início do mal é não ouvir”.

Ditos dos Padres do Deserto

O Desejo que Nos Faz Viver

21.03.2013

não se extinga o desejo que nos faz viver,
Deus do nosso desejo

alimenta em nós o fogo das paixões
que nos leva a agir
e o fogo da palavra que por dentro queime
e faça escuta

tu que és o guardião do nosso desejo,
aviva a chaga que o nosso imaginário
constantemente quer sem falha;
que vivamos o nosso desejo sem culpabilidade

circuncide-nos o coração a espada do amor,
pregão antigo e novo
em nosso corpo adormecido e acordado

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO, OP, “Do desejo”

Bento Domingues, OP, “Economia do Bem Comum”

18.03.2013

Na Doutrina Social da Igreja (DSI), o tema do bem comum é incontornável. Para João Paulo II, constituía mesmo o seu ponto-chave.

Para Friedrich A. Hayek, o bem comum é um conceito primitivo que remonta aos instintos ancestrais de tribos de caçadores, no tempo em que as pulsões colectivistas dominavam a consciência humana.

Ao contrário deste célebre autor, a noção de justiça social e de bem comum têm outras fontes, bíblicas e greco-romanas, alimentadas por alguns Padres da Igreja. Tomás de Aquino, na linha de Aristóteles, deu a este conceito a função de princípio da sua arquitectura ético-política.

Já Sto Agostinho via que a questão social não se resolve com falsos elogios à caridade: “não devemos desejar que haja indigentes para poder exercitar as obras de caridade. Dás pão ao faminto, mas melhor seria que ninguém passasse fome e não fosse necessário socorrer ninguém. […] Todas estas acções são motivadas pela misericórdia. Esquece, porém, os indigentes e logo cessarão as obras de misericórdia; mas acaso se extinguirá a caridade? Mais autenticamente amas o homem feliz a quem não há necessidade de socorrer; mais puro será este amor e muito mais sincero. Porque, se socorres o necessitado, desejas elevar-te acima dele e que ele te fique sujeito, porque recebe de ti um benefício. O necessitado, tu o ajudaste por isso te crês como superior aquele a quem socorreste”.

Quaresma V

17.03.2013

A criatura, isto é, toda a Igreja, espera ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus, isto é, aqueles que são filhos de Deus pela fé na Igreja esperam a glória, onde contemplarão Deus face a face. Agora contemplam-no como que velado, porque o contemplam em espelho e em enigma. A criatura está sujeita à vaidade, ou seja, à mutabilidade. Porque o justo, no dizer de Salomão, cai ao dia sete vezes, não por querer, pois não tem pecado na vontade. A este, justo, foi dito: Vai e não voltes a pecar. Sofre esta mutabilidade pacientemente quem faz penitência por amor de Deus, que o sujeitou, isto é, que quis sujeitar-se ou permitiu ser sujeito. E isto com a esperança da vida eterna, sobre a qual se ajunta: E também a criatura será livre de sujeição desta corrupção e mutabilidade, transformada na liberdade gloriosa dos filhos de Deus.

S. ANTÓNIO DE LISBOA, OFM, Sermões Dominicais

É Possível uma Teologia da Libertação Hoje, em Portugal?

13.03.2013

O Convento de São Domingos em Lisboa propõe um curso livre sobre a espiritualidade latino-americana da libertação. Uma Fé Libertadora: É Possível uma Teologia da Libertação Hoje, em Portugal? será leccionado pelo frade dominicano e mestre Zen Rui Manuel Grácio das Neves, autor dos livros Utopía y resistencia: Hacia una teopoética de la liberación (Salamanca: Editorial San Esteban, 1994) e Mística e Revolução: Espiritualidade, Poesia e Ensaio para um Novo Milénio (Arrimal: CEPSE, 2012), entre outros. Mais informações aqui.

Quaresma IV

10.03.2013

Ó Filho de Deus e Senhor meu! Como é que nos dás tantos bens juntos logo na primeira palavra? [...] Como nos dás, em nome do teu Pai, tudo o que se pode dar, pois queres que nos tenha como filhos? Porque a tua palavra não pode falhar. Obrigas a que a cumpra, o que não é pequena carga, pois que sendo Pai sofre connosco, seja qual for a gravidade das nossas ofensas. Se voltarmos para Ele, Ele há-de nos perdoar como ao filho pródigo, há-de nos confortar nas nossas provações, e há-de nos sustentar como deve fazer tal Pai — que forçosamente tem de ser melhor do que todos os pais deste mundo, porque n’Ele não pode haver senão todo o bem cumprido — e depois de tudo isto fazer-nos participantes e herdeiros com Vós.

S. TERESA DE JESUS, OCD, Caminho de Perfeição

Mostra-me

06.03.2013

Faz parte de uma das leituras da Liturgia das Horas de hoje, assinada pelo bispo Teófilo de Antioquia, do século II:

Se tu me dizes: “Mostra-me o teu Deus”, eu posso responder-te: “Mostra-me o homem que há em ti, e eu te mostrarei o meu Deus.” Mostra-me, portanto, como vêem os olhos da tua mente e como ouvem os ouvidos do teu coração.

Bento Domingues, OP, “Não Basta um Novo Papa”

05.03.2013

Seria um abuso responsabilizar S. Pedro pela história do papado e pela sua configuração actual. Segundo parece, o primeiro Bispo de Roma a ser chamado Papa, foi João I, no séc. VI, embora fosse um termo do vocabulário cristão, de carinho pelos pastores das comunidades.

Nas circunstâncias actuais, nos limites da escolha de um novo Papa, seria desejável ver alguém eleito disposto a fazer uma reforma do governo da Igreja Católica. Antes de mais, que se lembre da ausência de representação de metade da Igreja, denunciada pelo Cardeal Suenens, no Vaticano II: as mulheres. Acabar com a forma actual de sigilo na escolha dos Bispos. A eleição do Papa seria mais representativa se fosse escolhido a partir de representantes das Conferências Episcopais do mundo católico. Os movimentos laicais, na sua diversidade, deveriam dispor de canais de representação. As Congregações Religiosas, femininas e masculinas, não poderiam ficar de fora, dado o seu carisma de carismas na Igreja.

Quaresma III

03.03.2013

Isto, então, é o que eu penso sobre a Justiça de Deus. O meu próprio caminho é todo confiança e amor, e não consigo entender as almas que têm medo de um Amigo tão carinhoso. Às vezes, quando leio livros onde a perfeição é colocada diante de nós com o objectivo obstruído por mil obstáculos, a minha pobre cabeça rapidamente se cansa. Fecho o tratado erudito, que cansa o meu cérebro e seca o meu coração, e volto para as Sagradas Escrituras. Então tudo se torna claro e luminoso — uma só palavra abre horizontes infinitos, a perfeição aparece fácil, e eu vejo que é suficiente reconhecer a nossa insignificância, e como crianças entregarmo-nos nos Braços do Bom Deus.

S. TERESA DO MENINO JESUS, OCD, Cartas para os Seus Irmãos Missionários

Bento Domingues, OP, “O Papa Não é a Cabeça da Igreja”

28.02.2013

É precisamente porque estamos no chamado Ano da Fé, que importa não a desfigurar com expressões ridículas resvalando para a idolatria. Os católicos sabem que o Papa não é a Igreja, nem a cabeça da Igreja e que a si próprio se designa como “servo dos servos de Deus”. Como diz S. Paulo, seguindo a verdade no amor, cresceremos em tudo em direcção Àquele que é a cabeça, Cristo; Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que plenifica tudo em todos (Ef 4, 15; 1, 22-23 e par.).

O apóstolo escolheu e usou estas imagens para que ninguém, na Igreja, pretenda substituir Jesus Cristo, fundamento da unidade eclesial na pluralidade dos seus carismas, por qualquer culto idolátrico. Como os papas não são sucessores de Cristo, é de elementar decência teológica denunciar qualquer expressão de papolatria.

Bento Domingues, OP, “Venho o Papa Novo”

27.02.2013

É precisamente porque estamos no chamado Ano da Fé, que importa não a desfigurar com expressões ridículas resvalando para a idolatria. Os católicos sabem que o Papa não é a Igreja, nem a cabeça da Igreja e que a si próprio se designa como “servo dos servos de Deus”. Como diz S. Paulo, seguindo a verdade no amor, cresceremos em tudo em direcção Àquele que é a cabeça, Cristo; Cabeça da Igreja, que é o seu Corpo, a plenitude daquele que plenifica tudo em todos (Ef 4, 15; 1, 22-23 e par.).

O apóstolo escolheu e usou estas imagens para que ninguém, na Igreja, pretenda substituir Jesus Cristo, fundamento da unidade eclesial na pluralidade dos seus carismas, por qualquer culto idolátrico. Como os papas não são sucessores de Cristo, é de elementar decência teológica denunciar qualquer expressão de papolatria.

Quaresma II

24.02.2013

Uma palavra falou o Pai, que foi o seu Filho, e di-la sempre em eterno silêncio, e em silêncio a há-de ouvir a alma.

S. JOÃO DA CRUZ, OCD, Ditos de Luz e Amor

TEAR: Justiça (Laborinho Lúcio e Patrícia Reis)

22.02.2013

Quaresma I

19.02.2013

De facto, a nossa vida, enquanto somos peregrinos na terra, não pode estar livre de tentações, e o nosso aperfeiçoamento realiza-se precisamente através das provações. Ninguém se conhece a si mesmo se não for provado, ninguém pode receber a coroa se não tiver vencido, ninguém pode vencer se não combater, e ninguém pode combater se não tiver inimigo e tentações.

Está em grande aflição Aquele que dos confins da terra faz ouvir o seu clamor, mas não será abandonado. Ele quis prefigurar-nos a nós que somos o seu Corpo; quis prefigurar-nos naquele seu Corpo em que já morreu e ressuscitou e subiu ao Céu, para que os membros esperem confiadamente chegar também aonde a Cabeça os precedeu.

Portanto, o Senhor transfigurou-se em Si, quando quis ser tentado por Satanás. Líamos há pouco no Evangelho que o Senhor Jesus Cristo era tentado pelo demónio. Mas em Cristo também tu eras tentado, porque Ele tomou para Si a tua condição humana, para te dar a sua salvação; para Si tomou a tua morte, para te dar a sua vida; para Si tomou os teus ultrajes, para te dar a sua glória; por conseguinte, para Si tomou as tuas tentações, para te dar a sua vitória.

S. AGOSTINHO, Comentários sobre os Salmos

Bento Domingues, OP, “As Religiões Não São Todas Iguais”

15.02.2013

As religiões são manifestações humanas. Suponho que Deus não tem religião. Em tudo o que é humano, também pode surgir o desumano. A religião exprime o que, em nós, há de melhor: a procura da fonte de sentido, o que podemos esperar da vida e o que podemos fazer uns pelos outros. Em suma, os percursos sinuosos da fé, da esperança e da eternidade do verdadeiro amor.

O místico é aquele que nunca pode parar em nenhuma das suas realizações e expressões. As nossas ideias de divindade não são divinas. O idólatra é aquele que não interroga as crenças, os ritos, os preceitos e os interditos, a organização, a autoridade e tudo aquilo a que chama a sua religião. Ao tratar imagens e instituições muito relativas como absolutas e expressões da vontade de Deus, não procura, não investiga e afirma cada vez mais o mesmo, receando que as dúvidas façam ruir todo o seu edifício. Como a afirmação de Deus e dos seus atributos estão ao serviço desse universo idolátrico, não podem deixar de ser a idolatria das idolatrias.

Miguel Almeida, SJ e Eduardo Lourenço sobre a Renúncia

15.02.2013

Distinction and Inseperability

12.02.2013

The aim of man is not outward holiness by works, but life in God, yet this last expresses itself in works of love.

Outward as well as inward morality helps to form the idea of true Christian freedom. We are right to lay stress on inwardness, but in this world there is no inwardness without an outward expression. If we regard the soul as the formative principle of the body, and God as the formative principle of the soul, we have a profounder principle of ethics than is found in Pantheism. The fundamental thought of this system is the real distinction between God and the world, together with their real inseparability, for only really distinct elements can interpenetrate each other.

MEISTER ECKHART, OP, “Outward and Inward Morality”

Ser Enviado

11.02.2013

A partir de Is 6,1-2a/3-8, 1Cor 15,1-11, e Lc 5,1-11:

Prestes a entrar no período da Quaresma, somos relembrados que vimos a esta celebração para dela sermos enviados. É já para esta atitude que aponta a afirmação de Isaías que vamos escutar. Talvez falemos demasiado de Deus, sobretudo quando o fazemos com propriedade. O frade dominicano José Augusto Mourão disse uma vez que todo o discurso directo sobre Deus é obsceno. Que fazemos, então? Fazemos como Jesus, falamos mais sobre nós do que sobre Deus, falamos sobre Deus através de nós. Falamos, por exemplo, nas redes que lançamos e naquelas que nos ligam. Falamos também da consciência social, da dignidade humana, do nosso horizonte comum, e deixamos que estas palavras se transformem em acções. E assim, tal como em Jesus, será o nosso testemunho que falará de Deus como uno e colectivo, triuno, relacional. Será a nossa vida que falará de Deus sem nomear Deus.

Bento Domingues, OP, “Santas, Submissas e Rebeldes”

09.02.2013

Ora, o que há a destacar de mais extraordinário e paradoxal, nesses relatos, é a enorme falta de fé de Jesus nos seus discípulos. Tão grande que recorreu às discípulas, às mulheres, individualmente e em grupo, para que fossem elas a comunicar-lhes que nada estava acabado com a crucifixão: o projecto, o sonho e Ele próprio estavam vivos e para sempre.

As mulheres, tidas por mentirosas, não podiam testemunhar em tribunal. Jesus viu que foram elas que, sem arredar pé, O seguiram até ao fim. Eram elas as suas testemunhas e encarregou-as de evangelizar os apóstolos, que o medo e a falta de fé tinham feito dispersar. Os próprios textos insistem, no entanto, que os homens, os discípulos, não lhes deram crédito. Continuavam com a ideia velha e derrotada de que o testemunho das mulheres não valia nos processos jurídicos. Elas serviam, quando muito, para levantar boatos. Como Tomé, tinham de ser eles a verificar. Cristo repreende-os: homens de pouca fé, continuais incapazes de vos render à palavra das discípulas.

TEAR: Criatividade (João Bicker)

01.02.2013

Um Coração em Deus

30.01.2013

Dá-me, Senhor Deus, um coração vigilante, que nenhum pensamento curioso arraste para longe de ti; um coração nobre que nenhuma afeição indigna debilite; um coração recto que nenhuma intenção equívoca desvie; um coração firme, que nenhuma adversidade abale; um coração livre, que nenhuma paixão subjugue.
 Concede-me, Senhor meu Deus, uma inteligência que te conheça, uma vontade que te busque, uma sabedoria que te encontre, uma vida que te agrade, uma perseverança que te espere com confiança e uma confiança que te possua, enfim.

S. TOMÁS DE AQUINO, OP

Bento Domingues, OP, “Ano da Fé. Um Decreto, Para Quê? (3)”

28.01.2013

Dir-se-á que ainda não há distância suficiente para interrogar e avaliar o período pós-conciliar que, segundo alguns observadores, misturou a primavera com o inverno, de que falava Karl Rahner. Mais delicada ainda será a apreciação das medidas da Congregação da Doutrina da Fé que atingiram os mais inovadores teólogos e movimentos teológicos e pastorais, nos diversos continentes, sobretudo nas décadas de oitenta e noventa, medidas que, aliás, ainda não estão cansadas.

[...]

Diante dos gravíssimos problemas actuais da sociedade e da Igreja, nota-se um tal retraimento e timidez, que é legítimo perguntar: não estarão as comunidades cristãs a serem vítimas de um longo período no qual a sua voz não contou para nada? Quando, agora, nos interrogamos sobre a sua falta de empenhamento militante, talvez esqueçamos uma resposta antiga: ninguém nos convocou, ninguém quis ouvir a nossa voz, compartilhar as nossas dúvidas e interrogações, tomar a sério a nossa situação pouco canónica e pouco alinhada com a opinião dominante.

A Natureza no Pensamento Cristão Medieval

24.01.2013

Bento Domingues, OP, “Ano da Fé. Um Decreto, Para Quê? (2)”

21.01.2013

É antiga a convicção de que o silêncio é o pai dos Pregadores e que a graça da pregação é secundada pelo estudo e pela contemplação. A fórmula dominicana foi cunhada muito cedo e já fazia parte do ensino de Tomás de Aquino: contemplar e dar testemunho da realidade contemplada. Era, desde a antiguidade, conhecida e exaltada a superioridade da vida contemplativa em relação à vida activa. Em benefício da sua própria causa, o santo doutor observou: a vida activa, que nasce da abundância da contemplação, vale mais do que a pura contemplação. Iluminar é melhor do que ser, apenas, luz. Foi este, aliás, o estilo da vida escolhida por Jesus.

A resposta é brilhante. Na prática, continuava a rivalidade entre o tempo consagrado ao principal e o tempo gasto com realidades temporais, inferiores. O tempo gasto na actividade esvaziava os ganhos da contemplação. A oração de S. Domingos, testemunhada pelos seus contemporâneos, estava sempre povoada pelas alegrias e tristezas do quotidiano. O trabalho apostólico não o dispersava nem o esvaziava.

O Baptismo como Mergulho e Emersão

20.01.2013

A partir de Is 62,1-5, 1Cor 12,4-11, e Jo 2,1-11:

Neste domingo em que celebramos o baptismo de Jesus recordamos como ele foi ungido pelo Espírito Santo (isto é, pelo amor divino), tornando-se Cristo. Podemos pensar no baptismo que nos tornou cristãos. Através deste sacramento mergulhamos livremente em Deus, e emergimos numa nova vida, renascemos, através de uma consciência comunitária em igreja. O que Jesus fez e continua a fazer é mostrar como as portas do céu, que pareciam fechadas, estão escancaradas. Deus está no meio de nós, torna-se presente para nós quando amamos o próximo. Inspirados pela primeira leitura, olhemos então para Jesus como aquele sobre o qual repousou o espírito de Deus para que ele e a Igreja que continua o seu trabalho iluminem os povos na procura de um amanhã justo e pacífico.

Ser Humano

20.01.2013

Ser humano é lutar pela plenitude da vida.

FREI BETTO, OP

Entrevista a Fr. Bruno Cadoré, OP

18.01.2013

O Mestre-Geral da Ordem Dominicana, fr. Bruno Cadoré, esteve recentemente em Portugal. Conheci-o pessoalmente quando visitou o Convento do Cristo Rei no Porto, ao qual estou ligado. Fr. Bruno escuta com humildade e atenção, procurando sempre formas de fomentar a união e promover a cooperação entre as pessoas para que a alegria dos laços floresça. A RTP transmitiu uma reportagem da visita que inclui uma entrevista a ele e ao Mestre da Província Portuguesa, fr. José Nunes. Pode ser vista aqui nos primeiros 10 minutos.

Bento Domingues, OP, “Ano da Fé. Um Decreto, Para Quê? (1)”

18.01.2013

A incapacidade de questionar, em profundidade, esta versão trituradora da máquina capitalista é a vergonha do nosso tempo. O Papa relembrou-o, muito recentemente, mas os economistas, os gestores, os banqueiros, os ministros que se confessam cristãos preferem espiritualidades de chá de tília religiosa, a ouvir o clamor dos pobres e dos empobrecidos e questionar teorias que mostram a sua inadequação, pelos frutos que produzem. As teorias são para os seres humanos, não estes para teorias, onde as pessoas estão sempre a mais.

As interrogações são inevitáveis: tanta ciência económica e financeira, ensinada nas Universidades Católicas, não será capaz de imaginar contributos para alternativas concretas, técnica e politicamente viáveis? A Banca é para salvar as pessoas ou serão estas, as exploradas, que devem salvar os interesses da Banca, mediante decisões governamentais? Não será possível desconstruir configurações políticas que, nos seus efeitos, resultam em grandes negócios para uns e em castigo para a maioria da população? Estaremos numa civilização esgotada a transitar de continente para continente, enquanto sistema de exploração, sem tentar curar as suas raízes?

Bento Domingues, OP, “Presépio Aberto”

09.01.2013

A banalização ou a ocultação dos presépios escondem as teologias das construções literárias do presépio dos evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas. Reflectem, ambos, um debate interno ao próprio judaísmo. As primeiras gerações dos discípulos de Jesus eram formadas por mulheres e homens judeus que desejavam abrir por dentro o próprio judaísmo. O presépio reflecte o que se passou na vida adulta de Jesus e na construção das comunidades com a presença do mundo pagão.

Jesus não nasce na cidade de Jerusalém, centro do poder político e religioso. Os pastores representam, precisamente, os que não frequentavam o culto oficial e são os primeiros a chegar ao presépio. Os Magos passam por Jerusalém, mas não ficam lá. A estrela desloca-os para a periferia, significando que se trata não de um fenómeno astronómico, mas teológico. Se os judeus da religião ortodoxa não reconhecem Jesus, os Magos, pagãos, procuram-no. Jesus, com Maria e José, depois da viagem pelo Egipto não vão morar no templo. Vão trabalhar para Nazaré, no meio de toda a gente. O presépio realiza, em miniatura, o que foi a revelação de Jesus na sua vida adulta: Deus anda à solta e faz a sua morada, o seu templo, onde menos se espera e faz família com quem não é da família.

O Céu em Portugal

09.01.2013

Szaza vem de Istambul e já passou por muitos lugares: Áustria, Bélgica, Dinamarca, Emirados Árabes Unidos, Eslováquia, Espanha, EUA, Finlândia, Grécia, Hungria, Líbano, Nepal, República Checa, Turquia, e Vietname. Está agora em Portugal e olha para a realidade portuguesa de um modo atento, descobrindo a dimensão espiritual do nosso quotidiano que tantas vezes nos escapa — como aqui. (Obrigado, Filipa.)

A Humildade...

08.01.2013

A humildade brota do auto-conhecimento.

S. CATARINA DE SENA, OP

TEAR: Paz (João Gabriel Silva)

07.01.2013

Visita Canónica do Mestre-Geral da OP

03.01.2013

O Mestre-Geral da Ordem dos Pregadores, fr. Bruno Cadoré, chega hoje a Portugal para uma visita canónica que vai passar ainda pelo Porto e por Fátima. O programa detalhado da visita está disponível aqui.

Bento Domingues, OP, “Bom e Mau Desassossego”

02.01.2013

A vida é um desassossego, também, por uma boa razão. É muito desagradável olhar para alguém muito satisfeito com ele próprio e com a sua obra. Fica-se com a impressão de que já morreu e finge que está vivo. O desassossego significa que uma pessoa ainda não está acabada, ainda tem futuro, está a fazer-se. Uma Igreja sossegada, convencida de que é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, precisaria de alguém que lhe lembrasse que parou antes de tempo.

[...]

Dadas as conquistas sociais, culturais e políticas que as mulheres já conseguiram, diferenciadas segundo os países e continentes, existe a tentação de não olhar de frente os crimes que continuam a cometer-se contra a parte maior da humanidade. Direitos e deveres implicam igualdade social de mulheres e homens. A hierarquia católica e as autoridades de outras confissões religiosas não podem reclamar essa igualdade na sociedade civil e negá-la no campo religioso, incapacitando-as de se tornarem as grandes impulsionadoras, a nível local e mundial, de mudanças inadiáveis.

A Procura Revolta da Paz

01.01.2013

Na medida em que a pessoa está em Deus, a pessoa está em paz. Tudo o que de uma pessoa está em Deus tem paz; tudo o que de uma pessoa está fora de Deus tem tumulto. S. João diz, “todo aquele que nasceu de Deus vence o mundo” (1Jo 5,4). O que quer que nasce de Deus procura a paz e corre para a paz. Por isso Jesus disse, “vade in pace: vai em paz, corre em paz”. A pessoa que está numa corrida, uma corrida contínua, e está em paz, tal pessoa é uma pessoa celeste. Os céus revolvem-se constantemente e ao correrem procuram a paz.

MESTRE ECKHART, OP, “Sermão 7”
(trad. Sérgio Dias Branco, a partir da trad. para inglês de Frank Tobin)